“A graça do silêncio”: reflexões a partir do capítulo quinto da Regra de
Santa Clara
Por Frei Fábio Cesar Gomes
O capítulo quinto da Forma de Vida de Santa Clara
como sugere o próprio título: “Sobre o silêncio, o locutório e a grade”, trata
de questões que dizem respeito mais propriamente à índole contemplativa da vida
das Irmãs Pobres. As várias determinações sobre portas, chaves, trancas, etc –
também presentes no capítulo onze que trata da observância da clausura (cfr.
rsc 11,3-7) – provêm das Regras papais e se justificam pelo fato de que o
mosteiro de São Damião estava localizado fora dos muros de Assis e, por isso,
muito exposto a invasões.
A originalidade de Clara neste capítulo da Forma de Vida, porém, aparece sobretudo no que diz respeito à sua compreensão de silêncio, sobre o que, num primeiro momento gostaríamos de concentrar nossa atenção para, logo em seguida, traçarmos alguns paralelos entre o pensamento dela e o de Francisco sobre o assunto. Por fim, muito brevemente, acenaremos para a pertinência do tema com relação a algumas questões levantadas nos Fóruns Provinciais.
Compreensão de silêncio em Clara
Ainda que Clara prescreva a observância da norma do silêncio em tempos e lugares bem determinados (cfr. rsc 5,1-2), a sua Regra não chega a proibir às irmãs o uso da palavra, como acontece, por exemplo, na Regra de Hugolino: “o silêncio contínuo seja constantemente observado por todas, de maneira que não lhes seja permitido falar nem umas com as outras nem com outras pessoas sem licença,…” (RHUG 6).
Pelo contrário, a Regra de Clara determina que as
irmãs “podem insinuar o que for necessário sempre e em toda parte” (rsc 5,4),
além de admitir que elas conversem com as pessoas externas ao mosteiro, no
locutório e até – ainda que rarissimamente – também na grade (cfr. rsc 5,5-9).
De fato, a norma do silêncio parece estar subordinada ao grande valor da
convivência fraterna, em função da qual ela reconhece a necessidade e a
importância da fala, especialmente na enfermaria, “em que as irmãs sempre podem
falar discretamente para distrair as doentes e cuidar delas” (rsc 5,3).
Assim, podemos afirmar que para Clara, mais do que ausência total de palavras e rumores, o silêncio diz respeito a uma atitude fundamental de vida, ao modo de ser da escuta de Deus em todos os momentos e circunstâncias da vida. Trata-se, portanto, de cultivar o modo de ser da escuta como uma atitude fundamental da própria vida. Um modo de ser que se manifesta também no próprio modo de falar das irmãs: “discretamente”, “brevemente e em voz baixa” (rsc 5,3-4). É para a aquisição e conservação deste modo de ser por parte de cada irmã que a observância da norma do silêncio parece estar querendo apontar.
Compreensão do silêncio em Clara e Francisco:
alguns paralelos
Ainda que a Regra de Francisco não determine, como a de Clara, os tempos e os lugares de se observar a norma do silêncio, isso não significa que ele não o considere importante. Pelo contrário, para Francisco o silêncio é tido como uma graça proveniente da prodigalidade do próprio Deus. Portanto, antes de ser uma conquista humana, o silêncio é uma dádiva divina que o frade deve esforçar-se por manter, por guardar (cfr. RNB 11,2; RERM 3). Assim, tal como para Clara, também para Francisco o silêncio, mais do que uma questão de calar ou falar, diz respeito à disposição daquele que, em todas as situações da vida, está continuamente preocupado em escutar aquela palavra que brota continuamente do âmago do silêncio abismal de Deus.
Além disso, é interessante observar que Francisco
fala da “graça do silêncio” justamente naquele capítulo da Regra em que trata
mais propriamente do relacionamento dos frades entre si, exortando-os a não se
caluniarem nem porfiarem com palavras (cfr. RnB 11,2). Desta forma, o cultivo
do modo de ser da escuta por parte de cada frade representa a condição de
possibilidade de uma autêntica vida fraterna, enquanto nos previne das suas
duas maiores ameaças: a calúnia e as discussões vãs. Aqui, é interessante
perceber que, se para Clara – como vimos – o critério da caridade fraterna
permite que o silêncio próprio da vida contemplativa seja rompido, para
Francisco, é a mesma caridade fraterna a impor aos irmãos que vão pelo mundo
que silenciem todo tipo de discussão e de julgamento (cfr. rb 3,11).
Mais ainda, assim compreendido como atitude fundamental de escuta, o silêncio não diz apenas respeito aos chamados à vida contemplativa, mas, também a nós que, desde as nossas origens, fomos enviados pela Igreja a pregar a todos a penitência (cfr. 1Cel 33,7; lm 3,10.11; 12; ltc 49,2; 51,10; ap 37,6). De fato, é interessante perceber que, na Carta a Toda Ordem, antes mesmo de nos exortar a darmos testemunho da voz do Filho de Deus e a anunciarmos a todos a Sua onipotência (cfr. CTORD 9), Francisco nos convoca a uma atitude de escuta atenta e de profundo acolhimento da Palavra de Deus (cfr. CTORD 6-7).
Por fim, tal como Clara, também para Francisco o
modo de ser da escuta deve manifestar-se no nosso próprio modo de falar. E se
isso vale para todos os frades, mais ainda para os pregadores, aos quais
recomenda que “seja sua linguagem examinada e casta, para utilidade e
edificação do povo, anunciando-lhe, com brevidade de palavra, os vícios e as
virtudes, o castigo e a glória; porque o Senhor, sobre a Terra, usou de palavra
breve” (rb 9,4-5). Neste contexto, a graça do silêncio manifesta-se num modo
próprio de pregar segundo o qual não é o evangelizador – com sua eloquência – a
colocar-se em evidência, mas, em cujo centro está sempre a pessoa de Jesus
Cristo, aquele que “usou de palavra breve”, pois nos transmitiu somente as
palavras que o Pai Lhe tinha confiado (cfr. Jo 17,8).
Relevâncias do tema
Na síntese dos nossos fóruns, falou-se em realizar a leitura orante da Palavra de Deus em fraternidade semanalmente e em celebrar o capítulo local mensal, privilegiando momentos de oração e de retiro. Até mesmo surgiu a proposta da revitalização do nosso eremitério a fim de acolher pessoas que demandam por retiro e recolhimento. Não estaria tudo isso revelando a necessidade de privilegiarmos tempos e espaços de silêncio exterior que nos possibilitem adquirir e conservar a atitude interior de escuta e acolhimento da voz do Filho de Deus (cfr. CTORD 6)?
No entanto, evidenciou-se, sobretudo a necessidade
de redimensionarmos as nossas presenças, primando pela qualidade de vida
fraterna em vista da evangelização. Aqui, a reflexão de Clara e Francisco sobre
o silêncio nos parece bastante oportuna. De fato, o redimensionamento diz
respeito a um processo que requer de cada um de nós, e de todos nós juntos, uma
grande capacidade de fazer silêncio, um grande esforço “por manter o silêncio”
(RNB 11,2; RERM 3), como diria Francisco. E isso, tanto no sentido de nos
colocarmos à escuta daquilo que o Espírito do Senhor nos fala no momento
presente da História, como no sentido de silenciarmos todas as formas de
calúnias e de discussões vãs (cfr. rnb 11,1; 2Tm 2,14).
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