terça-feira, 12 de junho de 2012


“A graça do silêncio”: reflexões a partir do capítulo quinto da Regra de Santa Clara

Por Frei Fábio Cesar Gomes

O capítulo quinto da Forma de Vida de Santa Clara como sugere o próprio título: “Sobre o silêncio, o locutório e a grade”, trata de questões que dizem respeito mais propriamente à índole contemplativa da vida das Irmãs Pobres. As várias determinações sobre portas, chaves, trancas, etc – também presentes no capítulo onze que trata da observância da clausura (cfr. rsc 11,3-7) – provêm das Regras papais e se justificam pelo fato de que o mosteiro de São Damião estava localizado fora dos muros de Assis e, por isso, muito exposto a invasões.

A originalidade de Clara neste capítulo da Forma de Vida, porém, aparece sobretudo no que diz respeito à sua compreensão de silêncio, sobre o que, num primeiro momento gostaríamos de concentrar nossa atenção para, logo em seguida, traçarmos alguns paralelos entre o pensamento dela e o de Francisco sobre o assunto. Por fim, muito brevemente, acenaremos para a pertinência do tema com relação a algumas questões levantadas nos Fóruns Provinciais.

Compreensão de silêncio em Clara

Ainda que Clara prescreva a observância da norma do silêncio em tempos e lugares bem determinados (cfr. rsc 5,1-2), a sua Regra não chega a proibir às irmãs o uso da palavra, como acontece, por exemplo, na Regra de Hugolino: “o silêncio contínuo seja constantemente observado por todas, de maneira que não lhes seja permitido falar nem umas com as outras nem com outras pessoas sem licença,…” (RHUG 6).

Pelo contrário, a Regra de Clara determina que as irmãs “podem insinuar o que for necessário sempre e em toda parte” (rsc 5,4), além de admitir que elas conversem com as pessoas externas ao mosteiro, no locutório e até – ainda que rarissimamente – também na grade (cfr. rsc 5,5-9). De fato, a norma do silêncio parece estar subordinada ao grande valor da convivência fraterna, em função da qual ela reconhece a necessidade e a importância da fala, especialmente na enfermaria, “em que as irmãs sempre podem falar discretamente para distrair as doentes e cuidar delas” (rsc 5,3).

Assim, podemos afirmar que para Clara, mais do que ausência total de palavras e rumores, o silêncio diz respeito a uma atitude fundamental de vida, ao modo de ser da escuta de Deus em todos os momentos e circunstâncias da vida. Trata-se, portanto, de cultivar o modo de ser da escuta como uma atitude fundamental da própria vida. Um modo de ser que se manifesta também no próprio modo de falar das irmãs: “discretamente”, “brevemente e em voz baixa” (rsc 5,3-4). É para a aquisição e conservação deste modo de ser por parte de cada irmã que a observância da norma do silêncio parece estar querendo apontar.

Compreensão do silêncio em Clara e Francisco: alguns paralelos

Ainda que a Regra de Francisco não determine, como a de Clara, os tempos e os lugares de se observar a norma do silêncio, isso não significa que ele não o considere importante. Pelo contrário, para Francisco o silêncio é tido como uma graça proveniente da prodigalidade do próprio Deus. Portanto, antes de ser uma conquista humana, o silêncio é uma dádiva divina que o frade deve esforçar-se por manter, por guardar (cfr. RNB 11,2; RERM 3). Assim, tal como para Clara, também para Francisco o silêncio, mais do que uma questão de calar ou falar, diz respeito à disposição daquele que, em todas as situações da vida, está continuamente preocupado em escutar aquela palavra que brota continuamente do âmago do silêncio abismal de Deus.

Além disso, é interessante observar que Francisco fala da “graça do silêncio” justamente naquele capítulo da Regra em que trata mais propriamente do relacionamento dos frades entre si, exortando-os a não se caluniarem nem porfiarem com palavras (cfr. RnB 11,2). Desta forma, o cultivo do modo de ser da escuta por parte de cada frade representa a condição de possibilidade de uma autêntica vida fraterna, enquanto nos previne das suas duas maiores ameaças: a calúnia e as discussões vãs. Aqui, é interessante perceber que, se para Clara – como vimos – o critério da caridade fraterna permite que o silêncio próprio da vida contemplativa seja rompido, para Francisco, é a mesma caridade fraterna a impor aos irmãos que vão pelo mundo que silenciem todo tipo de discussão e de julgamento (cfr. rb 3,11).

Mais ainda, assim compreendido como atitude fundamental de escuta, o silêncio não diz apenas respeito aos chamados à vida contemplativa, mas, também a nós que, desde as nossas origens, fomos enviados pela Igreja a pregar a todos a penitência (cfr. 1Cel 33,7; lm 3,10.11; 12; ltc 49,2; 51,10; ap 37,6). De fato, é interessante perceber que, na Carta a Toda Ordem, antes mesmo de nos exortar a darmos testemunho da voz do Filho de Deus e a anunciarmos a todos a Sua onipotência (cfr. CTORD 9), Francisco nos convoca a uma atitude de escuta atenta e de profundo acolhimento da Palavra de Deus (cfr. CTORD 6-7).

Por fim, tal como Clara, também para Francisco o modo de ser da escuta deve manifestar-se no nosso próprio modo de falar. E se isso vale para todos os frades, mais ainda para os pregadores, aos quais recomenda que “seja sua linguagem examinada e casta, para utilidade e edificação do povo, anunciando-lhe, com brevidade de palavra, os vícios e as virtudes, o castigo e a glória; porque o Senhor, sobre a Terra, usou de palavra breve” (rb 9,4-5). Neste contexto, a graça do silêncio manifesta-se num modo próprio de pregar segundo o qual não é o evangelizador – com sua eloquência – a colocar-se em evidência, mas, em cujo centro está sempre a pessoa de Jesus Cristo, aquele que “usou de palavra breve”, pois nos transmitiu somente as palavras que o Pai Lhe tinha confiado (cfr. Jo 17,8).

Relevâncias do tema

Na síntese dos nossos fóruns, falou-se em realizar a leitura orante da Palavra de Deus em fraternidade semanalmente e em celebrar o capítulo local mensal, privilegiando momentos de oração e de retiro. Até mesmo surgiu a proposta da revitalização do nosso eremitério a fim de acolher pessoas que demandam por retiro e recolhimento. Não estaria tudo isso revelando a necessidade de privilegiarmos tempos e espaços de silêncio exterior que nos possibilitem adquirir e conservar a atitude interior de escuta e acolhimento da voz do Filho de Deus (cfr. CTORD 6)?

No entanto, evidenciou-se, sobretudo a necessidade de redimensionarmos as nossas presenças, primando pela qualidade de vida fraterna em vista da evangelização. Aqui, a reflexão de Clara e Francisco sobre o silêncio nos parece bastante oportuna. De fato, o redimensionamento diz respeito a um processo que requer de cada um de nós, e de todos nós juntos, uma grande capacidade de fazer silêncio, um grande esforço “por manter o silêncio” (RNB 11,2; RERM 3), como diria Francisco. E isso, tanto no sentido de nos colocarmos à escuta daquilo que o Espírito do Senhor nos fala no momento presente da História, como no sentido de silenciarmos todas as formas de calúnias e de discussões vãs (cfr. rnb 11,1; 2Tm 2,14).


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