I Fioretti



O que são os fioretti de São Francisco


Fioretti significa “florezinhas”. Elas foram escritas em italiano antigo do século XIV e eram estórias contadas, passando dos discípulos de São Francisco até o século XIV, quando foram colocadas por escrito.
Os Fioretti não pretendem contar fatos históricos acontecidos. Eles refletem o modo de pensar dos frades daquela época e revelam certas verdades sobre São Francisco e Santa Clara. Neles existem lendas misturadas com fatos verídicos. São 53 Capítulos, os quais iremos publicar na íntegra. 
Ao lê-los devemos buscar o ensinamento espiritual que se pretende passar, ou seja, uma verdadeira formação franciscana. 


Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado, e de sua Mãe, a Virgem Maria. 
Este livro contém alguns Fioretti, milagres e exemplos devotos do glorioso pobrezinho de Cristo Frei São Francisco e de alguns santos seus companheiros.
Em louvor de Jesus Cristo. Amém.


Primeiramente devemos considerar que o glorioso  São Francisco, em todos os atos de sua vida, foi conforme a Cristo bendito: porque como Cristo, no começo de sua pregação, escolheu doze apóstolos, que desprezassem todas as coisas do mundo e o seguissem na pobreza e nas outras virtudes, assim S. Francisco elegeu ao principio, para fundar a sua Ordem, doze companheiros possuidores da altíssima pobreza; e como um dos doze apóstolos de Cristo, reprovado por Deus, finalmente se enforcou, do mesmo modo, um dos doze companheiros de S. Francisco, por nome João da Capela, apostatou, enforcando-se também.
E isto servirá para os eleitos de grande exemplo e de matéria de humildade e temor, por considerar que ninguém poderá estar certo de perseverar até o fim na graça de Deus. E como aqueles apóstolos foram diante de todo o mundo maravilhosos de santidade e cheios do Espírito Santo, assim aqueles santíssimos companheiros de S. Francisco foram homens de tanta santidade, que, desde o tempo dos apóstolos até aos nossos dias, não houve assim maravilhosos e santos; porquanto um deles foi arrebatado até ao terceiro céu como S. Paulo; e este foi Frei Egídio; outro deles, isto é, Frei Filipe Longo, foi tocado nos lábios por um anjo com um carvão em brasa, como o profeta Isaías; outro ainda, chamado Frei Silvestre, falava com Deus como um amigo com outro, do mesmo modo que Moisés; um voava, por sutileza de intelecto, até à luz da divina sapiência, como a águia, isto é, João Evangelista, e este foi Frei Bernardo o humildíssimo, que profundissimamente interpretava a santa Escritura; um deles foi santificado por Deus e canonizado no céu, vivendo ainda no mundo, e este foi Frei Rufino, gentil-homem de Assis.
E assim todos foram privilegiados com singulares sinais de santidade, como se dirá daqui por diante.



De Frei Bernardo de Quintavale, primeiro companheiro de São Francisco.

O primeiro companheiro de S. Francisco foi Frei Bernardo de Assis, o qual assim se converteu. Trazendo S. Francisco ainda vestes seculares, embora já houvesse renegado o mundo, e andando todo desprezível e mortificado pela penitência de modo a ser tido por muitos como estúpido e escarnecido como louco, perseguido com pedradas e lodo por seus parentes e por estranhos, e passando pacientemente, por entre injúrias e zombarias, como surdo e mudo: Frei Bernardo de Assis, que era um dos mais nobres e ricos e sábios da cidade, começou sabiamente a considerar em S. Francisco o tão excessivo desprezo, a grande paciência nas injúrias e que, havia dois anos já assim abominado e desprezado por todos, parecia sempre mais constante e paciente, começou a pensar e a dizer de si para consigo: "Não posso compreender que este Francisco não possua grande graça de Deus"; e o convidou para cear e dormir em sua casa; e S. Francisco aceitou, e ceou e dormiu em casa dele.
E Frei Bernardo encheu o coração de desejos de contemplar a santidade dele: mandou preparar-lhe uma cama no seu próprio quarto, no qual sempre de noite ardia uma lâmpada. E S. Francisco, para ocultar sua santidade, logo que entrou no quarto, deitou-se e pareceu dormir; e Frei Bernardo também se deitou, depois de algum tempo, e começou a ressonar fortemente, como se estivesse dormindo profundamente.
S. Francisco, certo de que ele dormia, levantou-se e pôs-se em oração, levantando os olhos e as mãos ao céu; e, com grandíssima devoção e fervor, dizia: "Deus meu, Deus meu", e, assim dizendo e chorando muito, esteve até pela manhã, repetindo sempre: "Deus meu, Deus meu", e nada mais; e isto dizia S. Francisco, contemplando e admirando a excelência da divina Majestade, a qual se dignava condescender com o mundo que perecia, e preparava-se pelo seu pobrezinho Francisco a prover com o remédio da salvação a alma dele e as dos outros.
E então, iluminado pelo espírito de profecia, prevendo as grandes coisas que Deus ia realizar por seu intermédio e de sua Ordem, e considerando a sua insuficiência e pouca virtude, clamava e suplicava a Deus que, com a sua piedade e onipotência, sem a qual nada pode a humana fragilidade, suprisse, ajudasse e cumprisse o que pôr si só não podia.
Vendo monsior Bernardo, à luz da lâmpada, os devotíssimos atos de S. Francisco, e considerando devotamente as palavras que ele dizia, foi tocado e inspirado pelo Espírito Santo a mudar de vida; pelo que, ao amanhecer, chamou S. Francisco, e disse assim: "Irmão Francisco, estou inteiramente disposto, no meu coração, a abandonar o mundo e a seguir-te no que mandares". Ouvindo isto S. Francisco alegrou-se em espírito e falou: "Frei Bernardo, isto que disseste é coisa tão grande e maravilhosa, que é preciso pedirmos conselho a Nosso Senhor Jesus Cristo e rogar-lhe que nos mostre a sua vontade e nos ensine o modo de executá-la: para isso vamos ao bispado, onde há um bom padre, e pediremos que celebre a missa; depois ficaremos rezando até Terça, pedindo a Deus que, abrindo o missal três vezes, nos mostre o caminho que lhe agrada seguir-mos".
Respondeu Frei Bernardo que isso era muito de seu agrado. Puseram-se a caminho e foram ao bispado; e depois de ouvirem a missa e estarem em oração até Terça, o padre, a pedido de S. Francisco, tomou o missal e, feito o sinal da santa cruz, o abriu por três vezes em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo: e na primeira vez apareceu aquela palavra que disse Cristo no Evangelho ao jovem que lhe perguntou pelo caminho da perfeição: "Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá aos pobres e segue-me"; na segunda, apareceu aquela palavra que Cristo disse aos apóstolos, quando os mandou pregar: "Nada leveis para a jornada, nem bordão, nem alforje, nem sandálias, nem dinheiro"; querendo com isto ensinar-lhes que deviam pôr em Deus toda a esperança na vida, e dar toda a atenção a pregação do santo Evangelho; na terceira abertura do missal apareceu aquela palavra que Cristo disse: "Quem quiser vir após mim, abandone a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me".
Então disse S. Francisco a Frei Bernardo: "Eis o conselho que Cristo nos dá: vai, pois, e faze exatamente como ouviste: e seja bendito Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual se dignou mostrar-nos seu caminho evangélico".
Ouvindo isto, partiu monsior Bernardo e vendeu o que possuía, porque era muito rico: e com grande alegria distribuiu tudo aos pobres e às viúvas e aos órfãos, aos prisioneiros, aos mosteiros, aos hospitais e aos peregrinos; e em cada coisa S. Francisco fielmente e prudentemente o ajudava. Ora, vendo um por nome Frei Silvestre, que S. Francisco dava e mandava dar tanto dinheiro aos pobres, cheio de avareza disse a S. Francisco: "Não me pagaste por inteiro aquelas pedras que me compraste para consertar a igreja e agora, que tens dinheiro, paga-me".
Então S. Francisco, maravilhando-se de tanta avareza e não que rendo questionar com ele, como verdadeiro seguidor do Evangelho, meteu as mãos na sacola de Frei Bernardo e, enchendo-as de moedas, derramou-as na sacola de Frei Silvestre, dizendo que, se mais quisesse, mais lhe daria.
Satisfeito Frei Silvestre com aquilo, partiu e voltou a casa: e de tarde, repensando no que fizera durante o dia, e arrependendo-se de sua avareza, e considerando o fervor de monsior Bernardo e a santidade de S. Francisco, na noite seguinte e em duas noites outras teve de Deus esta visão: que da boca de S. Francisco saía uma cruz de ouro, cujo cimo tocava o céu e os braços se estendiam do oriente ao ocidente.
Por causa desta visão ele deu por amor de Deus o que possuía e fez-se frade menor, e viveu na Ordem com tanta santidade e graça, que falava com Deus, como um amigo faz com outro, conforme S. Francisco muitas vezes verificou e além se declarará.
Frei Bernardo, semelhantemente, recebeu tantas graças de Deus, que com freqüência ficava arroubado em Deus em contemplação: e S. Francisco dele dizia que era digno de toda a reverência e que havia sido ele o fundador daquela Ordem: porque fora o primeiro a abandonar o mundo, nada reservando para si, mas dando tudo aos pobres de Cristo, e tinha começado a pobreza evangélica, oferecendo-se nu aos braços do Crucificado: o qual seja por nós bendito por todos  os séculos. Amém.




Como São Francisco, por um mau pensamento que teve contra Frei Bernardo,
ordenou ao dito Frei Bernardo que por três vezes lhe pisasse a garganta e a boca.


O devotissimo servo do Crucificado, Frei São Francisco, por causa da aspereza da penitência e contínuo chorar, ficara quase cego e quase não via o lume.
Uma vez, entre outras, partiu do convento, onde estava e foi ao convento onde vivia Frei Bernardo, para com ele falar das coisas divinas: e, chegando ao convento, soube que ele estava na floresta em oração, todo enlevado e absorvido em Deus. Então S. Francisco foi à floresta e o chamou: "Vem, disse, e fala a este cego"; e Frei Bernardo não lhe respondeu nada, porque, sendo homem de grande contemplação, tinha a mente suspensa e enlevada em Deus, e porque tinha a graça singular de falar de Deus, como S. Francisco tinha por vezes experimentado: e portanto desejava falar com ele.
Depois de algum tempo, chamou-o do mesmo modo, segunda e terceira vez; e de nenhuma vez Frei Bernardo o ouviu, por isso não lhe respondeu e não se foi a ele. Pelo que S. Francisco se partiu um pouco desconsolado; maravilhando-se e lastimando-se só consigo de que Frei Bernardo, chamado por três vezes, não lhe fora ao encontro.
Partindo-se com este pensamento, S. Francisco, quando se afastou um pouco, disse ao seu companheiro: "Espera-me aqui". Distanciou-se para um lugar solitário e, pondo-se em oração, rogava a Deus que lhe revelasse por que Frei Bernardo não lhe havia respondido; e assim estando, veio uma voz de Deus que lhe disse assim: "Ó pobre homenzinho, por que estás perturbado? deve o homem deixar Deus pela criatura? Frei Bernardo, quando o chamaste, estava junto de mim; e portanto não podia vir ao teu encontro, nem te responder; não te admires, pois, de que ele te não pudesse responder; porque estava tão fora de si que de tuas palavras nada escutou". Tendo tido S. Francisco esta resposta de Deus, imediatamente com grande pressa voltou a Frei Bernardo, para acusar-se humildemente do pensamento que tivera contra ele.
E Frei Bernardo, vendo-o vir para ele, foi-lhe ao encontro e lançou-se-lhe aos pés. Então S. Francisco o fez levantar-se e referiu-lhe com grande humildade o pensamento e a perturbação que tivera contra ele, e como Deus lhe havia respondido, assim concluindo: "Ordeno-te pela santa obediência que faças o que te mandar".
Temendo Frei Bernardo que S. Francisco lhe ordenasse alguma coisa excessiva, como soía fazer, quis honestamente esquivar-se desta obediência, e assim respondeu: "Estou pronto a obedecer-vos, se me prometerdes de fazer o que eu vos ordenar a vós". E prometendo S. Francisco, Frei Bernardo disse: "Ora, dizei, pai, o que quereis que eu faça".
Então disse S. Francisco: "Ordeno-te pela santa obediência que, para punir a minha presunção e a ousadia do meu coração, quando eu me deitar de costas, me ponhas um pé na garganta e outro na boca e assim passes sobre mim três vezes, envergonhando-me e vituperando-me e especialmente dizendo-me: 'Jaz para aí, vilão filho de Pedro Bernardone: de onde te vem tanta soberba, vilíssima criatura que és?"' Ouvindo isto, e bem que lhe custasse muito a fazê-lo, no entanto por santa obediência, o mais cortesmente que pôde, realizou o que S. Francisco lhe ordenara.
Isto feito, disse S. Francisco: "Ora, ordena-me o que queres que eu faça; porque te prometi obedecer". Disse Frei Bernardo: "Ordeno-te pela santa obediência que, todas as vezes que estivermos juntos, me repreendas e corrijas asperamente dos meus defeitos".
Do que S. Francisco muito se maravilhou; porque Frei Bernardo era de tanta santidade que ele lhe tinha grande reverência e não o reputava repreensível em coisa nenhuma; e por isso dali em diante S. Francisco evitava de estar muito com ele, pela dita obediência, a fim de não dizer alguma palavra de correção contra ele, o qual reputava de tanta santidade; mas, quando sentia vontade de vê-lo ou de ouvi-lo falar de Deus, dele se separava o mais depressa possível e se partia; e era motivo de grande devoção ver-se com que caridade e reverência e humildade o santo Pai Francisco tratava e falava com Frei Bernardo, seu filho primogênito.
Em louvor e glória de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco. Amém.

Como o anjo fez uma pergunta a Frei Elias, guardião de um convento do vale de Espoleto, e porque Frei Elias lhe respondeu com soberba, partiu e seguiu o caminho de Santiago, onde encontrou Frei Bernardo e lhe contou esta história.


No princípio e fundação da Ordem, quando havia poucos irmãos e não havia conventos estabelecidos, S. Francisco, por devoção, se foi a Santiago de Galícia, e levou consigo alguns irmãos, entre os quais um foi Frei Bernardo; e seguindo assim juntos pelo caminho, acharam numa terra um pobre enfermo, do qual tendo compaixão, disse a Frei Bernardo: "Filho, quero que fiques aqui servindo a este enfermo"; e Frei Bernardo, ajoelhando-se humildemente e inclinando a cabeça, recebeu a obediência do santo pai e ficou naquele lugar; e S. Francisco com os outros companheiros foi a Santiago.
Ali ficando reunidos e estando de noite em oração na igreja de Santiago, foi por Deus revelado a S. Francisco que ele devia fundar muitos conventos pelo mundo; porque sua Ordem se devia dilatar e crescer em grande multidão de frades; e por esta revelação começou S. Francisco a estabelecer conventos naquela região.
E, voltando S. Francisco pelo mesmo caminho, encontrou Frei Bernardo mais o enfermo com o qual o havia deixado, e que estava inteiramente curado. E no ano seguinte permitiu a Frei Bernardo que fosse a Santiago; e assim S. Francisco voltou ao vale de Espoleto; e aí ficaram em lugar deserto ele e Frei Masseo e Frei Elias e alguns outros, os quais tinham muito cuidado em não aborrecer ou perturbar S. Francisco em sua oração; e isto faziam pela grande reverência que tinham e porque sabiam que Deus lhe revelava grandes coisas na oração. Sucedeu um dia que, estando S. Francisco em oração na floresta, um belo jovem, com trajo de peregrino, chegou à porta do convento e bateu com tanta pressa e tanta força por tanto tempo que os frades ficaram muito maravilhados daquele inusitado modo de bater.
Frei Masseo foi à porta e abriu-a e disse àquele jovem: "De onde vens tu, filho, que parece nunca teres vindo aqui, batendo de modo tão desusado?" Respondeu o jovem: "E como é que se deve bater?" Disse Frei Masseo: "Bate três vezes, uma após outra, devagar: depois espera que o irmão tenha rezado um pai-nosso e venha abrir, e se durante esse tempo ele não vier, bate; outra vez". Respondeu o jovem: "Tenho grande pressa, e bati com tanta força, porque tenho de fazer uma longa viagem, e vim aqui falar com o irmão Francisco; mas por ele estar agora em contemplação na floresta, não o quero incomodar.
Vai e manda-me Frei Elias, que lhe quero fazer uma pergunta, porque sei que' ele é muito sábio". Foi Frei Masseo e disse a Frei Elias que sé dirigisse àquele jovem: e ele se escandalizou e não quis ir; assim Frei Masseo não soube o que fazer nem o que responder àquele jovem; que, se dissesse: "Frei Elias não pode vir", mentia; se dissesse que ele estava irritado e não queria vir, temia dar-lhe mau exemplo.
E porque no entanto Frei Masseo demorasse em voltar, o jovem bateu outra vez como a princípio; e pouco depois Frei Masseo retornou à porta e disse ao jovem: "Não observaste o que te ensinei ao bateres".
Respondeu o jovem: "Frei Elias não quis vir a mim: vai e dize a Frei Francisco que vim para falar com ele; mas, por não querer perturbar-lhe a oração, dize-lhe que mande Frei Elias entender-se comigo". Então Frei Masseo foi ter com S. Francisco, que orava na floresta com a face erguida para o céu, e lhe deu conta da embaixada do jovem e a resposta de Frei Elias: e este jovem era um anjo de Deus, em forma humana.
Então S. Francisco, sem mudar de lugar nem baixar o rosto, disse a Frei Masseo: "Vai e dize a Frei Elias que por obediência atenda imediatamente ao jovem".
Ouvindo Frei Elias a ordem de S. Francisco, foi à porta muito perturbado e com grande ímpeto e ruído a abriu e disse ao jovem: "Que queres?" Respondeu o jovem: "Cuidado, irmão, não te irrites, como pareces estar, porque a ira tolhe o espírito e não te deixa discernir o verdadeiro". Disse Frei Elias: "Dize o que queres de mim". Respondeu o jovem: "Eu te pergunto se àqueles que observam o santo Evangelho é lícito comer o que se põe diante deles, conforme o que disse Cristo aos seus discípulos: e te pergunto ainda se é lícito a algum homem obrigar a qualquer coisa contrária à liberdade evangélica".
Respondeu com soberba Frei Elias: "Sei bem disto, mas não te quero responder; cuida de teus negócios". Disse o jovem: "Saberei melhor do que tu responder a esta pergunta". Então Frei Elias, furioso, fechou a porta e retirou-se. Depois começou a pensar nesta pergunta, a duvidar de si mesmo e não a sabia responder porque era vigário da Ordem e tinha ordenado e feito uma constituição, contra o Evangelho e contra a ordem de S. Francisco, de que nenhum frade da Ordem comesse carne; por isso a dita pergunta era expressamente contra ele.
Pois, não sabendo explicar por si mesmo e considerando a modéstia do jovem e porque este dissera saber responder à pergunta melhor do que ele, volta à porta e abre-a para pedir ao jovem resposta à pergunta: mas se tinha ido, porque a soberba de Frei Elias não era digna de falar com o anjo.
Isto feito; S. Francisco, a quem tudo era por Deus revelado, retornou da floresta e com veemência, em alta voz, repreendeu Frei Elias, dizendo: "Mal fizeste, Frei Elias soberbo, que expulsaste de nós os santos anjos que nos vêm ensinar. Digo-te temer muito que a tua soberba te faça acabar fora da Ordem". E isto sucedeu como S. Francisco predissera; porque morreu fora da Ordem.
No mesmo dia e à mesma hora em que o anjo partiu, apareceu na mesma forma a Frei Bernardo, o qual voltava de Santiago e estava à beira de um grande rio, e saudou-o em sua lingua, dizendo: "Deus te dê a paz, ó bom irmão".
E maravilhando-se muito Frei Bernardo, e considerando a beleza do jovem e a saudação feita em sua própria língua, com cumprimento pacifico e semblante alegre perguntou-lhe: "Donde vens tu, bom moço?" Respondeu o anjo: "Venho do convento onde vive S. Francisco e fui ali falar com ele; e não pude, porque estava na floresta contemplando as coisas divinas e não o quis incomodar. E naquele convento residem Frei Masseo, Frei Egídio e Frei Elias; e Frei Masseo me ensinou a bater na porta como fazem os irmãos, mas Frei Elias, por não ter querido responder à questão que lhe propus, arrependeu-se depois e quis ouvir-me e falar-me e não pôde". Após estas palavras, disse o anjo a Frei Bernardo: "Por que não passas à outra margem?" Respondeu Frei Bernardo: "Porque temo o perigo pela profundidade da água que vejo".
Disse o anjo: "Passemos juntos, não tenhas medo". Tomou-lhe a mão e, num abrir e fechar de olhos, pô-lo na outra riba do rio.
Agora Frei Bernardo conheceu que ele era anjo de Deus, e, com grande reverência e gáudio, disse em voz alta: "Ó anjo bendito de Deus, dize-me como te chamas". Respondeu o anjo: "Por que perguntas meu nome, o qual é maravilhoso?" E dizendo assim o anjo desapareceu e deixou Frei Bernardo muito consolado, de tal modo que toda aquela viagem fez com alegria, e tomou nota do dia e da hora em que o anjo lhe aparecera.
E, chegando ao convento onde estava S. Francisco com os sobreditos companheiros, narra-lhes em ordem todas estas coisas, e conheceram com certeza que aquele mesmo anjo tinha aparecido no mesmo dia e na mesma hora a eles e a ele e deram graças a Deus. Amém.

Como o santo Frei Bernardo de Assis foi enviado por S. Francisco a Bolonha
e ali fundou um convento.

Porque S. Francisco e seus companheiros foram por Deus chamados e escolhidos para levar com o coração e as obras, e a pregar com a lingua, a cruz de Cristo, pareciam e eram homens crucificados, quanto às ações e à vida austera: e, portanto, desejavam mais suportar vergonha e opróbrios pelo amor de Cristo, do que ser honrados pelo mundo com reverências ou vãos louvores; rejubilavam-se com as injúrias e contristavam-se com as honras; e assim andavam pelo mundo como estrangeiros e forasteiros, nada mais levando consigo do que o Cristo crucificado.
E como eram verdadeiros ramos da verdadeira vide, isto é, Cristo, produziam grandes e bons frutos nas almas, as quais ganhavam para Deus. Sucedeu, no princípio da Ordem, S. Francisco mandar Frei Bernardo a Bolonha para que ai, conforme a graça que Deus lhe havia concedido, obtivesse fruto para Deus. E Frei Bernardo, fazendo o sinal-da-cruz, por santa obediência se foi e chegou a Bolonha.
E vendo-o as crianças, com hábito desusado e vil, zombavam dele e o injuriavam, como se faz com um louco. E Frei Bernardo, paciente e alegre, tudo suportava pelo amor de Cristo; até para que o pudessem maltratar melhor, pôs-se muito de propósito na praça da cidade; onde, se assentando, em torno dele se reuniram muitos meninos e homens; um lhe puxava o capuz por detrás, outro por diante, outro lhe atirava pó e pedra, outro o empurrava para cá e para lá; e Frei Bernardo sempre o mesmo, com a mesma paciência, com o semblante alegre, não se lastimava nem se aborrecia; e por muitos dias voltou ao mesmo ponto para suportar semelhantes coisas.
E por ser a paciência obra de perfeição e prova de virtude, um sábio doutor em leis, vendo e considerando tanta constância e virtude de Frei Bernardo em não se perturbar por tantos dias por nenhuma moléstia ou injúria, disse de si consigo: "Impossível é não ser este um santo homem".
E, acercando- se dele, perguntou-lhe: "Quem és? E por que vieste aqui?" E Frei Bernardo, como resposta, levou a mão ao peito e tirou a Regra de S. Francisco e deu-lha para que a lesse; e tendo-a lido, considerando-lhe o elevado estado de perfeição, com grandíssimo pasmo e admiração, voltou-se para os companheiros e disse: "Verdadeiramente é este o mais alto estado de religião, de que ouvi falar; e, portanto, este e os seus companheiros são dos mais santos homens do mundo, e comete grandíssimo pecado quem o injuria; o qual devia ser altamente honrado, porque é verdadeiramente amigo de Deus".
E disse a Frei Bernardo: "Se quiserdes ficar em um lugar em que podeis convenientemente servir a Deus, vo-lo darei de boa vontade, para a salvação de minha alma". Respondeu Frei Bernardo: "Senhor, creio que isto vos foi inspirado por Nosso Senhor Jesus Cristo, e portanto de boa vontade aceito vosso oferecimento para a honra de Cristo". Então o dito juiz, com grande alegria e caridade, levou Frei Bernardo à sua casa; e depois lhe deu o lugar prometido, e à sua custa preparou e arranjou tudo, e daí em diante se fez como pai e defensor de Frei Bernardo e de seus companheiros.
E Frei Bernardo, por sua santa conversação, começou a ser muito honrado por aquela gente, de modo que bem-aventurado se considerava quem nele podia tocar ou vê-lo. Ele, porém, como verdadeiro discípulo de Cristo e do humilde S. Francisco, temendo que a honra do mundo impedisse a paz e a salvação de sua alma, partiu dali e retornou a S. Francisco, e disse-lhe assim: "Pai, o convento está fundado na cidade de Bolonha: enviai irmãos que o mantenham e o habitem, porque nada de bom posso fazer, pois, devido às muitas honras que me prestam, temo perder mais do que ganhar".
Então S. Francisco, ouvindo todas estas coisas que Deus tinha realizado por Frei Bernardo, deu graças a Deus, que assim começava a aumentar os pobrezinhos discípulos da cruz; e logo mandou companheiros a Bolonha e à Lombardia, os quais instituíram muitos conventos em diversos lugares.
Em louvor e reverência do bom Jesus.



Como S. Francisco abençoou o santo Frei Bernardo e o deixou como seu vigário, quando passou desta para a outra vida.

Era Frei Bernardo de tanta santidade, que S. Francisco tinha por ele grande reverência e freqüentemente o louvava.
Estando um dia S. Francisco devotamente em oração, foi-lhe revelado por Deus que Frei Bernardo, por permissão divina, devia sustentar muitas e pungentes batalhas com o demônio.
Pelo que S. Francisco, tendo grande compaixão do dito Frei Bernardo, a quem amava como a filho, muitos dias orou com lágrimas, rogando a Deus por ele e recomendando-o a Jesus Cristo, que lhe desse vitória sobre o demônio.
E orando assim devotamente S. Francisco, Deus lhe respondeu: "Não temas, porque todas as tentações, com as quais Frei Bernardo deve ser combatido, são por Deus permitidas como exercício de virtude e coroa de mérito; e finalmente de todos os inimigos alcançará vitória, porque ele é um dos comensais do reino de Deus".
Da qual resposta S. Francisco recebeu grandíssima alegria e rendeu graças a Deus: e daquela hora em diante lhe dedicou sempre mais amor e reverência.
E bem lho demonstrou não só em vida mas até na morte. Porque, vindo S. Francisco a morrer, como o santo patriarca Jacó, estando em tomo dele seus dedicados filhos doridos e lacrimosos pela partida de tão amado pai, perguntou: "Onde esta o meu primogênito? Vem a mim, filho, para que a 'mia alma te bendiga, antes de minha morte".
Então Frei Bernardo disse em segredo a Frei Elias, que era vigário da Ordem: "Pai, coloca-te à mão direita do santo, para que ele te abençoe".
E, colocando-se Frei Elias à mão direita, S. Francisco, que perdera a vista pelo muito chorar, pôs a mão direita sobre a cabeça de Frei Elias e disse: "Esta não é a cabeça do meu primogênito Frei Bernardo".
Então Frei Bernardo adiantou-se à esquerda; e S. Francisco, estendendo os braços em forma de cruz, colocou a mão direita à cabeça de Frei Bernardo e a esquerda na de Frei Elias, e disse a Frei Bernardo: "Abençoe-te o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo com todas as bênçãos espirituais e celestiais em Cristo: pelo fato de teres sido o primeiro escolhido nesta Ordem para dar o exemplo evangélico e seguir a Cristo na pobreza evangélica; porque deste o que possuías e o distribuíste inteira e livremente com os pobres pelo amor de Cristo, mas ainda te ofereceste a ti mesmo nesta Ordem em sacrifício de suavidade.
Bendito sejas, pois, por Nosso Senhor Jesus Cristo e por mim, seu pobrezinho servo, com bênçãos eternas, quer caminhando, repousando, velando e dormindo, vivendo e morrendo. Quem te bendisser fique cheio de bênçãos e quem te maldisser não fique sem punição.
Sê o principal entre os teus irmãos, obedeçam todos os irmãos ao que ordenares: terás licença para receber e expulsar a quem quiseres e nenhum irmão terá poder sobre ti, e ser-te-á permitido ir e habitar onde te aprouver".
Depois da morte de S. Francisco os irmãos amaram e reverenciaram a Frei Bernardo como a pai venerável: e estando a morrer, vieram a ele muitos irmãos das diversas partes do mundo, entre os quais, o hierárquico e divino Frei Egídio, o qual com grande alegria disse: "Sursum corda, Frei Bernardo, sursum corda"; e Frei Bernardo disse em segredo a um irmão que preparasse para Frei Egídio um lugar apto à contemplação, e assim foi feito.
Chegando Frei Bernardo à hora da morte, mandou que o erguessem e falou aos irmãos que estavam diante dele, dizendo: "Caríssimos irmãos, não vos quero dizer muitas palavras: mas deveis considerar que no estado de religião em que vivi vós viveis, e no em que estou agora vós ainda estais, e acho isto em minha alma, que por mil mundos iguais a este não teria querido servir a outro senhor senão a Jesus Cristo: e de todos os pecados que cometi me acuso e apresento a minha culpa ao meu Salvador Jesus e a vós.
Rogo-vos, irmãos meus, que vos ameis uns aos outros"- E após estas palavras e outros bons ensinamentos, deitando-se na cama, sua face encheu-se de esplendor e alegria desmedidos, de que os irmãos muito se maravilharam; e naquela letícia sua alma santíssima, cercada de glória, passou da presente à bem-aventurada vida dos anjos. 
Pelo louvor e pela glória de Cristo. Amém.


Como S. Francisco fez uma Quaresma em uma ilha do lago de Perusa,
onde jejuou quarenta dias e quarenta noites e nada comeu além de meio pão.

Por ter sido o verídico servo de Cristo, monsior S. Francisco, em certas coisas, quase um outro Cristo dado ao mundo para a salvação dos homens, Deus Pai o quis fazer em muitas ações conforme e semelhante a seu filho Jesus Cristo; como no-lo demonstrou no venerável colégio dos doze companheiros, e no admirável mistério dos sagrados estigmas e no prolongado jejum da santa Quaresma, que fez deste modo.
Indo por uma feita S. Francisco, em dia de carnaval, ao lago de Perusa, à casa de um seu devoto, onde passou a noite, foi inspirado por Deus para observar aquela Quaresma em uma ilha do dito lago.
Pelo que S. Francisco pediu àquele devoto, pelo amor de Cristo, o levasse em sua barquinha a uma ilha do lago, onde não habitasse ninguém, e isto fizesse na noite de Quarta-feira de Cinzas sem que nenhuma pessoa o percebesse; e ele, pelo amor da grande devoção que tinha a S. Francisco, solicitamente atendeu-lhe ao pedi-lo e o transportou à dita ilha: e S. Francisco só levou consigo dois pãezinhos.
E, chegando à ilha e o amigo partindo para voltar a casa, S. Francisco lhe rogou por favor que não revelasse a quem quer que fosse a sua permanência na ilha e só o fosse procurar na Quinta-feira Santa; e assim o outro se foi. E S. Francisco ficou sozinho: e ali não havendo habitação em que ficasse, entrou num bosque muito copado, no qual muitos espinheiros e arbustos se reuniam a modo de uma cabana ou de uma cova, e naquele lugar se pôs em oração e a contemplar as coisas celestiais.
E ali passou toda a Quaresma sem comer nem beber, além da metade de um daqueles pãezinhos, conforme o que encontrou o seu devoto na Quinta-feira Santa, quando o foi procurar: o qual achou dois pãezinhos, um inteiro e outro pela metade.
E a outra metade acredita-se S. Francisco ter comido em reverência ao jejum do Cristo bendito, que jejuou quarenta dias e quarenta noites sem tomar nenhum alimento material.
E assim, com aquele meio pão, expulsou de si o demônio da vanglória e, a exemplo de Cristo, jejuou quarenta dias e quarenta noites. E depois, naquele lugar, onde S. Francisco fizera tão maravilhosa abstinência, realizou Deus muitos milagres pelos méritos dele; pela qual coisa começaram os homens a edificar casas e habitá-las; e em pouco tempo construiu-se um bom e grande castelo e houve um convento de frades, o qual se chama o convento da Ilha; e ainda os homens e mulheres daquela aldeia têm grande reverência por aquele lugar, onde S. Francisco passou a dita Quaresma.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como a caminhar expôs S. Francisco a Frei Leão as coisas que constituem a perfeita alegria.

Vindo uma vez S. Francisco de Perusa para S. Maria dos Anjos com Frei leão em tempo de inverno, e como o grandíssimo frio fortemente o atormentasse, chamou Frei Leão, o qual ia mais à frente, e disse assim: "Irmão Leão, ainda que o frade menor desse na terra inteira grande exemplo de santidade e de boa edificação, escreve todavia, e nota diligentemente que nisso não está a perfeita alegria".
E andando um pouco mais, chama pela segunda vez: "`S irmão Leão, ainda que o frade menor desse vista aos cegos, curasse os paralíticos, expulsasse os demônios, fizesse surdos ouvirem e andarem coxos, falarem mudos, e mais ainda, ressuscitasse mortos de quatro dias, escreve que nisso não está a perfeita alegria". E andando um pouco, S. Francisco gritou com força: "Ó irmão Leão, se o frade menor soubesse todas as línguas e todas as ciências e todas as escrituras e se soubesse profetizar e revelar não só as coisas futuras, mas até mesmo os segredos das consciências e dos espíritos, escreve que não está nisso a perfeita alegria".
Andando um pouco além, S. Francisco chama ainda com força: "Õ irmão Leão, ovelhinha de Deus, ainda que o frade menor falasse com língua de anjo e soubesse o curso das estrelas e as virtudes das ervas; e lhe fossem revelados todos os tesouros da terra e conhecesse as virtudes dos pássaros e dos peixes e de todos os animais e dos homens e das árvores e das pedras e das raízes e das águas, escreve que não está nisso a perfeita alegria".
E caminhando um pouco, S. Francisco chamou em alta voz: "Ô irmão Leão, ainda que o frade menor soubesse pregar tão bem que convertesse todos os infiéis à fé cristã, escreve que não está nisso a perfeita alegria".
E durando este modo de falar pelo espaço de duas milhas, Frei Leão, com grande admiração, perguntou-lhe e disse: "Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria". E S. Francisco assim lhe respondeu: "Quando chegarmos a S. Maria dos Anjos, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta do convento' e o porteiro chegar irritado e disser: 'Quem são vocês?'; e nós dissermos: "'Somos dois dos vossos irmãos', e ele disser: 'Não dizem a verdade; são dois vagabundos que andam enganando o mundo e roubando as esmolas dos pobres; fora daqui'; e não nos abrir e deixar-nos estar ao tempo, à neve e à chuva com frio e fome até à noite: então, se suportarmos tal injúria e tal crueldade, tantos maus tratos, prazenteiramente, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele e pensarmos humildemente e caritativamente que o porteiro verdadeiramente nos tinha reconhecido e que Deus o fez falar contra nós: ó irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria.
E se perseverarmos a bater, e ele sair furioso e como a importunos malandros nos expulsar com vilanias e bofetadas dizendo: 'Fora daqui, ladrõezinhos vis, vão para o hospital, porque aqui ninguém lhes dará comida nem cama'; se suportarmos isso pacientemente e com alegria e de bom coração, ó irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria. E se ainda, constrangidos pela fome e pelo frio e pela noite, batermos mais e chamarmos e pedirmos pelo amor de Deus com muitas lágrimas que nos abra a porta e nos deixe entrar, e se ele mais escandalizado disser: 'Vagabundos importunos, pagar-lhes-ei como merecem': e sair com um bastão nodoso e nos agarrar pelo capuz e nos atirar ao chão e nos arrastar pela neve e nos bater com o pau de nó em nó: se nós suportarmos todas estas coisas pacientemente e com alegria, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, as quais devemos suportar por seu amor; ó irmão Leão, escreve que aí e nisso está a perfeita alegria, e ouve, pois, a conclusão, irmão Leão.
Acima de todas as graças e de todos os dons do Espírito Santo, os quais Cristo concede aos amigos, está o de vencer-se a si mesmo, e voluntariamente pelo amor suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e desprezos, porque de todos os outros dons de Deus não nos podemos gloriar por não serem nossos, mas de Deus, do que diz o Apóstolo: 'Que tens tu que o não hajas recebido de Deus? E se dele o recebeste, por que te gloriares como se o tivesses de ti?' Mas na cruz da tribulação de cada aflição nós nos podemos gloriar, porque isso é nosso e assim diz o Apóstolo: "Não me quero gloriar, senão na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo"'.
Ao qual sejam dadas honra e glória in secula seculorum.
Amém.


Como S. Francisco ensinava Frei leão a responder,
e este só pode dizer o contrário do que S. Francisco queria.

Estando uma vez S. Francisco, no princípio da Ordem, com Frei Leão em um convento, onde não havia livro para rezar o ofício divino, ao chegar a hora de Matinas, disse S. Francisco a Frei Leão: "Caríssimo, não temos breviário, com que possamos rezar Matinas: mas, a fim de passarmos o tempo louvando a Deus, eu direi e tu me responderás como te ensinar; e toma cuidado, não digas as palavras de modo diverso do que te ensinar.
Direi assim: 'Õ irmão Francisco, praticaste tanto mal, tais pecados no século que és digno do inferno'; e tu, irmão Leão, responderás: 'Verdadeira coisa é que mereces o inferno profundíssimo"'- E Frei Leão, com simplicidade columbina, respondeu: "Estou pronto, pai, começa em nome de Deus".
Então S. Francisco começou a dizer: "Ó irmão Francisco, praticaste tantos males e tantos pecados no século, que és digno do inferno". E Frei Leão respondeu: "Deus fará por ti tantos bens, que irás ao paraíso". Disse S. Francisco: "Não digas assim, irmão Leão; mas quando eu disser: 'Irmão Francisco, praticaste tanta coisa iníqua contra Deus, que és digno de ser maldito por Deus', responderás: 'Em verdade és digno de ficar mesmo entre os malditos"'.
E Frei Leão respondeu: "De boa mente, pai".
Então S. Francisco, entre muitas lágrimas e suspiros e a bater no peito, disse em altas vozes: "Ó meu Senhor do céu e da terra; cometi contra ti tantas iniqüidades e tantos pecados que por isso sou digno de ser amaldiçoado por ti".
E Frei Leão respondeu: "Ó irmão Francisco, Deus te fará tal, que entre os benditos serás singularmente bendito". E S. Francisco, maravilhando-se de Frei Leão responder sempre o contrário do que ele havia ordenado, repreendeu-o, dizendo: "Por que não respondes como te ensino? Ordeno-te, pela santa obediência, que respondas como te ensinar.
Direi assim: "irmão Francisco miserável, pensas tu que Deus há de ter misericórdia de ti; não é tão certo que tens cometido tantos pecados contra o Pai da misericórdia e o Deus de toda consolação, de modo que não és digno de encontrar misericórdia?" E tu, irmão Leão, ovelhinha, responderás: 'De nenhum modo és digno de alcançar misericórdia"'. Mas depois, quando S. Francisco disse: "O irmão Francisco miserável", etc., então Frei Leão respondeu: "Deus Pai, cuja misericórdia é infinita mais do que o teu pecado, fará em ti grande misericórdia e te encherá de muitas graças".
A esta resposta S. Francisco docemente irritado e pacientemente perturbado disse a Frei leão: "Por que tiveste a presunção de ir contra a obediência, e por tantas vezes respondeste o contrário do que te impus?" Respondeu Frei Leão muito humilde e reverentemente: "Deus o sabe, pai meu, que cada vez tive vontade de responder como me ordenaste: mas Deus me fez falar como quis e não como eu queria".
Do que S. Francisco se maravilhou e disse a Frei Leão: "Peço-te afetuosamente que desta vez me respondas como te disser".
Respondeu Frei Leão: "Dize em nome de Deus, que por certo responderei desta vez como queres". E S. Francisco, entre lágrimas, disse: "Ó irmão Francisco miserável, pensas que Deus terá misericórdia de ti?" Responde Frei Leão: "Antes grandes graças receberás de Deus e serás exaltado e glorificado na eternidade, porque quem se humilha será exaltado: e eu não posso dizer de outro modo, porque Deus fala pela minha boca".
E assim nesta humilde contenda, com muitas lágrimas e muita consolação espiritual, velaram até ao amanhecer.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como Frei Masseo, quase gracejando, disse a S. Francisco que todo o mundo andava atrás dele, e ele respondeu que era para confusão do mundo e graça de Deus.

Estava uma vez S. Francisco no convento da Porciúncula com Frei Masseo de Marignano, homem de grande santidade, discrição e graça em falar de Deus; pela qual coisa S. Francisco o amava muito; um dia, voltando S. Francisco de orar no bosque, e ao sair do bosque, o dito Frei Masseo quis experimentar-lhe a humildade; foi-lhe ao encontro e, a modo de gracejo, disse: "Por que a ti? Por que a ti? Por que a ti?" S. Francisco respondeu: "Que queres dizer?" Disse Frei Masseo: "Por que todo o mundo anda atrás de ti e toda a gente parece que deseja ver-te e ouvir-te e obedecer-te? Não és homem belo de corpo, não és de grande ciência, não és nobre: donde vem, pois, que todo o mundo anda atrás de ti?" Ouvindo isto, S. Francisco, todo jubiloso em espírito, levantando a face para o céu por grande espaço de tempo, esteve com a mente enlevada em Deus; e depois, voltando a si, ajoelhou-se e louvou e deu graças a Deus; e depois, com grande fervor de espírito, voltouse para Frei Masseo e disse: "Queres saber por que a mim? Queres saber por que a mim? Queres saber por que todo o mundo anda atrás de mim? Isto recebi dos olhos de Deus altíssimo, os quais em cada lugar contemplam os bons e os maus: porque aqueles olhos santíssimos não encontraram entre os pecadores nenhum mais vil nem mais insuficiente nem maior pecador do que eu; e assim, para realizar esta operação maravilhosa, a qual entendeu de fazer, não achou outra criatura mais vil sobre a terra; e por isso me escolheu para confundir a nobreza, e a grandeza e a força e a beleza e a sabedoria do mundo; para que se reconheça que toda a virtude, e todo o bem é dele e não da criatura, e para que ninguém se possa gloriar na presença dele; mas quem se gloriar se glorie no Senhor, a quem pertence toda a honra e glória na eternidade".
Então Frei Masseo, ouvindo tão humilde resposta, dada com tanto fervor, se espantou e conheceu certamente que S. Francisco estava fundado na verdadeira humildade.
Em louvor de Cristo. Amém.


Como S. Francisco fez andar à roda muitas vezes a Frei Masseo
e depois tomou o caminho de Siena.


Indo um dia S. Francisco com Frei Masseo por um caminho, o dito Frei Masseo seguia um pouco na frente: e chegando a uma encruzilhada, por cujos caminhos se podia ir a Florença, a Siena, e a Arezzo, disse Frei Masseo: "Pai, que caminho devemos tomar?" Respondeu S. Francisco: "Aquele que Deus quiser". Disse Frei Masseo: "E como poderemos conhecer a vontade de Deus?" Respondeu S. Francisco: "Pelo sinal que te vou mostrar; assim ordeno a ti, pelo merecimento da santa obediência, que nesta encruzilhada, no ponto onde tens o pé, rodes em torno de ti, como fazem as crianças, e não pares de girar sem to dizer".
Então Frei Masseo começou a girar em roda, e tanto rodou que, pela vertigem da cabeça a qual se gera por tais voltas, caiu muitas vezes no chão. Mas, não dizendo S. Francisco que parasse e ele querendo fielmente obedecer, recomeçava.
Por fim, quando girava fortemente, disse S. Francisco: "Pára ai e não te movas". E ele estacou e S. Francisco lhe perguntou: "Voltado para onde tens o rosto?" Respondeu Frei Masseo: "Para Siena".
Disse S. Francisco: "Este é o caminho que Deus quer que sigamos". Andando por aquele caminho, Frei Masseo se maravilhava muito com o que S. Francisco lhe mandou fazer, como a uma criança, diante dos seculares que passavam: no entanto, pela reverência que tinha, nada ousava dizer ao santo pai.
Ao se aproximarem de Siena, os habitantes da cidade souberam da chegada do santo e vieram-lhe ao encontro; e por devoção o levaram mais o companheiro ao bispado, de modo que eles não tocaram o solo com os pés. Naquela hora alguns homens de Siena combatiam entre si e dois já haviam morrido.
Chegando-se a eles, S. Francisco pregou-lhes tão devotamente e tão santamente que os reduziu a todos à paz e grande união, juntando-os em concórdia.
Pelo que, ouvindo o bispo de Siena falar desta santa obra que S. Francisco fizera, convidou-o para sua casa e o recebeu com grandíssima honra naquele dia e também à noite. E na manhã seguinte S. Francisco, verdadeiro humilde, que em suas santas obras só procurava a glória de Deus, levantou-se bem cedo com o seu companheiro e partiu sem o bispo saber.
Pelo que o dito Frei Masseo ia murmurando consigo mesmo, dizendo pelo caminho: "Que coisa fez este santo homem? Fez-me rodar como uma criança, e ao bispo, que o honrou tanto, não disse nem ao menos uma palavra, nem agradeceu". E parecia a Frei Masseo que S. Francisco se portara com indiscrição.
Mas depois, por inspiração divina voltando a si e repreendendo-se, dizia em seu coração: "Frei Masseo, és muito soberbo, julgando as obras divinas, e és digno do inferno por tua indiscreta soberba: porque no dia de ontem o irmão Francisco fez obras tão santas que, se as fizesse o anjo de Deus, não seriam mais maravilhosas.
Assim, se ele te houvesse mandado atirar pedras, deverias obedecer: porque o que ele fez no caminho foi por ordem de Deus, como o demonstrou o bom resultado que se seguiu: pois, se ele não houvesse pacificado os que se combatiam, não somente muitos corpos, como já haviam começado, estariam mortos a faca, mas muitas almas o diabo teria carregado para o inferno; por esse motivo tu és estultíssimo e soberbo, murmurando contra o que manifestamente procedeu da vontade de Deus".
E todas estas coisas que dizia Frei Masseo seu coração, andando na frente, foram por Deus reveladas a S. Francisco.
Donde, aproximando-se dele, S. Francisco disse assim: "Atenta nas coisas em que pensas agora, porque são boas e úteis e inspiradas por Deus; mas a tua primeira murmuração era cega e vá e soberba e posta em tua alma pelo demônio".
Então Frei Masseo percebeu claramente que S. Francisco sabia dos segredos do seu coração e certamente compreendeu que o espírito da divina sabedoria dirigia todos os atos do santo pai.
Em louvor de Cristo. Amém.


Como S. Francisco pôs Frei Masseo no ofício de porteiro, de esmoleiro e de cozinheiro: depois, a pedido dos outros irmãos, o dispensou.

S. Francisco, querendo humilhar Frei Masseo, a fim de que, pelos muitos dons e graças que Deus lhe dava, não chegasse à vanglória, mas pela virtude da humildade crescesse de virtude em virtude, numa ocasião em que ele vivia em um convento solitário com aqueles seus primeiros companheiros verdadeiramente santos, dos quais um era Frei Masseo, disse um dia a Frei Masseo diante de todos os companheiros: "O Frei Masseo, todos estes teus companheiros têm a graça da contemplação e da oração; mas tu possuís a graça da pregação da palavra de Deus, para satisfazer o povo: e, portanto, quero, a fim de que os outros se possam entregar à contemplação, que faças ofício de porteiro, de esmoleiro e de cozinheiro; e quando os outros irmãos comerem, comeras fora da porta do convento, de sorte que os que chegarem ao convento, antes de baterem, os satisfaças com algumas boas palavras de Deus; de sorte que não haja necessidade de outra pessoa ir à porta a não ser tu: e isto o faças pelo merecimento da santa obediência".
Então Frei Masseo tirou o capuz e inclinou a cabeça, e humildemente recebeu e executou esta obediência durante alguns dias, desempenhando os ditos ofícios.
Pelo que os companheiros, como homens iluminados por Deus, começaram a sentir no coração grande remorso, ao considerarem que Frei Masseo era homem de grande perfeição como eles ou mais, e sobre ele estava posto todo o peso do convento e não sobre eles.
Por este motivo encheram-se todos de igual coragem e foram pedir ao pai santo que consentisse em distribuir com eles aqueles ofícios, pois as suas consciências por coisa nenhuma podiam sofrer que Frei Masseo suportasse tantas fadigas.
Ouvindo isto, S. Francisco cedeu ao pedido deles e consentiu em seus desejos e, chamando Frei Masseo, disse-lhe: "Frei Masseo, os teus companheiros querem compartir dos ofícios que te dei; e portanto quero que os ditos ofícios sejam divididos".
Disse Frei Masseo com grande humildade e paciência: "Pai, o que me impões, em tudo ou em parte, considero feito por Deus". Então S. Francisco, vendo a caridade dos outros e a humildade de Frei Masseo, fez- lhes uma prática maravilhosa sobre a santa humildade, ensinando-lhes que quanto maiores forem os dons e graças que Deus nos der, mais devemos ser humildes: porque sem a humildade nenhuma virtude é aceita por Deus.
E, feita a prédica, S. Francisco distribuiu os ofícios com grandíssima caridade.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Francisco e Frei Masseo puseram sobre uma pedra junto a uma fonte o pão que haviam mendigado, e S. Francisco muito louvou a pobreza. Depois rogou a Deus e a S. Pedro e a S. Paulo que lhes dessem o amor da santa pobreza; e como lhes apareceram S. Pedro e S. Paulo

O maravilhoso servo e seguidor de Cristo, isto é, monsior S. Francisco, para se conformar perfeitamente com Cristo em todas as coisas, o qual, segundo o que diz o Evangelho, mandou os discípulos dois a dois a todas aquelas cidades e regiões aonde devia ir; depois que, a exemplo de Cristo, reunira doze companheiros, os enviou pelo mundo a pregar dois a dois.
E, para lhes dar o exemplo de verdadeira obediência, começou ele primeiramente a ir a exemplo de Cristo, o qual começou primeiramente a fazer do que a ensinar.
Pelo que, tendo designado aos companheiros as outras partes do mundo, ele, tomando Frei Masseo por seu companheiro, seguiu para a província da França.
E chegando um dia, com muita fome, a uma cidade, andaram, segundo a Regra, mendigando pão pelo amor de Deus; e S. Francisco foi por uma parte e Frei Masseo por outra. Mas, por ser S. Francisco um homem muito desprezível e pequeno de corpo e por isso reputado um vil pobrezinho por quem não o conhecia, só recolheu algumas côdeas e pedacinhos de pão seco.
Mas a Frei Masseo, pelo fato de ser um homem alto e cheio de corpo, deram muitos e bons pedaços grandes e pães inteiros. Acabada a mendigação, reuniram-se fora da cidade para comer em um lugar onde havia uma bela fonte e junto uma bela pedra larga, sobre a qual cada um colocou as esmolas recebidas. E, vendo S. Francisco que os pedaços de Frei Masseo eram em maior número e mais belos e maiores que os dele, mostrou grande alegria e disse assim: "Õ Frei Masseo, não somos dignos deste grande tesouro".
E, repetindo estas palavras várias vezes, respondeu-lhe Frei Masseo: "Pai, como se pode chamar tesouro, onde há tanta pobreza e falta de coisas que necessitamos? Aqui não há toalha, nem faca, nem garfo, nem prato, nem casa, nem mesa, nem criada, nem criado".
Então disse S. Francisco: "Isto é o que considero grande tesouro, porque não há coisa nenhuma feita pela indústria humana; mas o que aqui existe é feito pela Providência divina, como se vê manifestamente pelo pão mendigado, pela mesa de pedra tão bela e pela fonte tão clara: por isso quero que peçamos a Deus que o tesouro da santa pobreza tão nobre, o qual tem Deus para servir, seja amado de todo o coração".
E ditas estas palavras e rezada a oração e tomada a refeição corporal com aqueles pedaços de pão e aquela água, levantaram-se para ir à França, e, encontrando uma igreja, disse S. Francisco ao companheiro: "Entremos nesta igreja para orar". E S. Francisco se pôs em oração atrás do altar: e nesta oração recebeu da divina visita tão excessivo fervor, que inflamou tão fortemente sua alma no amor da santa pobreza que, pela cor da face como pela boca excessivamente aberta, parecia lançar chamas de amor.
E vindo assim como abrasado ao companheiro, disse-lhe: "A. A. A., Frei Masseo, entrega-te a mim". Assim disse três vezes; e na terceira vez S. Francisco com o hálito levantou Frei Masseo no ar, e o lançou diante de si à distância de uma comprida lança; de que Frei Masseo teve grandíssimo espanto, e depois contou aos companheiros que naquela impulsão e suspensão, que lhe deu S. Francisco com o hálito, sentiu tal doçura na alma e consolação do Espírito Santo como nunca em sua vida sentira tanta.
E feito isto disse S. Francisco: "Companheiro caríssimo, vamos a S. Pedro e S. Paulo, e roguemo-lhes que nos ensinem e nos ajudem a possuir o desmesurado tesouro da santíssima pobreza; porque ela é tesouro tão digníssimo e tão divino que não somos dignos de possui-lo em nossos vilíssimos vasos; atendendo que ela é a virtude celeste, pela qual todas as coisas terrenas e transitórias são calcadas aos pés e pela qual todo obstáculo se afasta diante da alma, a fim de que ela se possa livremente unir com o Deus eterno.
E ela esta virtude, a qual faz a alma presa à terra conversar no céu com os anjos.
Esta é aquela que acompanhou Cristo na cruz; com Cristo foi sepultada, com Cristo ressuscitou, com Cristo subiu ao céu, e a qual, e ainda nesta vida, concede às almas, que dela se enamoram, agilidade para voar ao céu; para o que ela ainda guarda as armas da verdadeira humildade e da caridade.
E por isso roguemos aos santíssimos apóstolos de Cristo, os quais foram perfeitos amadores desta pérola evangélica, que nos mendiguem esta graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que pela sua santíssima misericórdia nos conceda o merecimento de sermos verdadeiros amadores, observadores e humildes discípulos da preciosíssima, amantíssima e evangélica pobreza".
E com este falar chegaram a Roma e entraram na igreja "de S. Pedro; e S. Francisco se pôs a orar em um canto da igreja, e Frei Masseo em outro; e conservando-se muito tempo em oração com muitas lágrimas e devoção, apareceram a S. Francisco os santíssimos apóstolos Pedro e Paulo com grande esplendor e disseram: "Pois que pedes e desejas observar aquilo que Cristo e os santos apóstolos observaram, Nosso Senhor Jesus Cristo nos envia a ti para anunciar-te que tua oração foi escutada e te foi concedido por Deus, a ti e a teus seguidores, perfeitissimamente o tesouro da santíssima pobreza.
E ainda de sua parte te dizemos que a todo aquele que a teu exemplo seguir perfeitamente este desejo está assegurada a beatitude da vida eterna; e tu e todos os teus discípulos sereis por Deus abençoados".
E, ditas estas palavras, desapareceram, deixando S. Francisco cheio de consolação. O qual se levantou da oração e voltou ao companheiro e perguntou-lhe se Deus lhe havia revelado alguma coisa; e ele respondeu que não.
Então S. Francisco lhe disse como os santos apóstolos lhe haviam aparecido, e o que tinham revelado. Do que, cada um cheio de letícia, determinaram volver ao vale de Espoleto, deixando de ir à França.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Francisco, estando com os companheiros a falar de Deus,
ele apareceu no meio deles.

Estando S. Francisco uma vez, nos princípios da Ordem, recolhido com os seus companheiros a falar de Cristo, em um convento, no fervor de espírito mandou a um deles que em nome de Deus abrisse a boca e falasse de Deus o que o Espírito Santo lhe inspirasse.
Obedecendo o irmão à ordem e falando maravilhosamente de Deus, S. Francisco lhe impôs silêncio e mandou a outro irmão que fizesse o mesmo.
Obedecendo este, e falando sutulíssimamente Deus, S. Francisco lhe impôs o silêncio e ordenou ao terceiro que falasse de Deus. O qual semelhantemente começou a falar tão profundamente das coisas secretas de Deus, que certamente S. Francisco conheceu que ele, como os dois outros, falava pelo Espírito Santo. E isto ainda se demonstrou por nítido sinal; porque, estando neste falar, apareceu Cristo bendito no meio deles sob as espécies e em forma de um jovem belíssimo, e abençoando-os, encheu-os a todos de tanta doçura, que todos foram arrebatados de si mesmos, sem sentir nada deste mundo.
E depois, voltando eles a si, disse-lhes S. Francisco: "Irmãos meus caríssimos, agradecei a Deus, que quis pela boca dos simples revelar os tesouros da divina sapiência; porque Deus é aquele que abre a boca aos mudos e faz falar sapientíssimamente a língua dos simples".
Em seu louvor. Amém.

Como S. Clara comeu com S. Francisco e com os seus companheiros em S. Maria dos Anjos.

S. Francisco, quando estava em Assis, freqüentes vezes visitava S. Clara, dando-lhe santos ensinamentos. E tendo ela grandíssimo desejo de comer uma vez com ele, o que lhe pediu muitas vezes, ele nunca lhe quis dar esta consolação.
Vendo os seus companheiros o desejo de S. Clara, disseram a S. Francisco: "Pai, a nós nos parece que este rigor não é conforme à caridade divina; que à irmã Clara, virgem tão santa, dileta de Deus, não atendas em coisa tão pequenina como é comer contigo; e especialmente considerando que ela pela tua pregação abandonou as riquezas e as pompas do mundo.
E deveras, se te pedisse graça maior do que esta, devias concedê-la à tua planta espiritual".
Então S. Francisco respondeu: "Parece-vos que devo atendê-la?" E os companheiros: "Sim, pai: digna coisa é que lhe dês esta consolação".
Disse então S. Francisco: "Pois se vos parece, a mim também. Mas, para que ela fique mais consolada, quero que esta refeição se faça em S. Maria dos Anjos; porque ela esteve longo tempo reclusa em S. Damião 25: ser-lhe-á agradável ver o convento de S. Maria onde foi tonsurada e feita esposa de Jesus Cristo; e ali comeremos juntos em nome de Deus". Chegando o dia aprazado, S. Clara saiu do mosteiro com uma companheira, e, acompanhada pelos companheiros de S. Francisco, chegou a S. Maria dos Anjos e saudou devotamente a Virgem Maria diante do altar onde fora tonsurada e velada; assim a conduziram a ver o convento até à hora do jantar.
E nesse tempo S. Francisco mandou pôr a mesa sobre a terra nua, como de costume. E chegada a hora de jantar, sentaram-se S. Francisco e S. Clara, juntos, e um dos companheiros de S. Francisco com a companheira de S. Clara, e depois todos os companheiros de S. Francisco se acomodaram humildemente à mesa.
Como primeira vianda S. Francisco começou a falar de Deus tão suave, tão clara, tão maravilhosamente, que, descendo sobre eles a abundância da divina graça, ficaram todos arrebatados em Deus.
E estando assim arrebatados, com os olhos e as mãos levantados para o céu, os homens de Assis e de Betona e os da região circunvizinha viram que S. Maria dos Anjos e todo o convento e a selva, que havia então ao lado do convento, ardiam inteiramente; e parecia que fosse um grande incêndio que ocupasse a igreja, o convento e a selva, ao mesmo tempo. Pelo que os assisienses com grande pressa correram para ali, crendo firmemente que tudo estava ardendo.
Mas, chegando ao convento e não encontrando nada queimado, entraram dentro e acharam S. Francisco com S. Clara e com toda a sua companhia arrebatados em Deus em contemplação, e assentados ao redor desta humilde mesa. Pelo que compreenderam ter sido aquilo fogo divino e não material, o qual Deus tinha feito aparecer miraculosamente para demonstrar e significar o fogo do divino amor no qual ardiam as almas daqueles santos frades e santas monjas; de onde voltaram com grande consolação em seus corações e com santa edificação.
Assim, passado grande espaço de tempo, S. Francisco voltando a si e S. Clara juntamente com os outros, e sentindo-se bem confortados com o cibo espiritual, não cuidaram do cibo corporal.
E assim, terminado aquele bendito jantar, S. Clara, bem acompanhada, voltou a S. Damião. Pelo que as irmãs ao vê-la tiveram grande alegria; porque temiam que S. Francisco a tivesse mandado dirigir um outro mosteiro qualquer, como já mandara Soror Inês, sua santa irmã, para dirigir como abadessa o mosteiro de Monticelli de Florença: e S. Francisco de uma vez dissera a S. Clara: "Prepara-te, que poderei talvez precisar mandar-te a outro convento".
E ela, como filha da santa obediência, respondera: "Pai, estou sempre pronta a ir aonde me mandares". E portanto as irmãs muito se alegraram quando a viram voltar; e S. Clara ficou de ora em diante muito consolada.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Francisco recebeu o conselho de S. Clara e do santo Frei Silvestre de que devia, pregando, converter muita gente; e pregou às aves e fez calar as andorinhas.

O humilde servo de Cristo S. Francisco, pouco tempo depois de sua conversão, tendo já reunido e recebido na Ordem muitos companheiros, entrou a pensar muito e ficou em dúvida sobre o que devia fazer, se somente entregar-se à oração, ou bem a pregar algumas vezes: e sobre isso desejava muito saber a vontade de Deus.
E porque a humildade que tinha não o deixava presumir de si nem de suas orações, pensou de conhecer a vontade divina por meio das orações dos outros.
Pelo que chamou Frei Masseo e disse-lhe assim: "Vai a Soror Clara e dize-lhe da minha parte que ela com algumas das mais espirituais companheiras rogue devotamente a Deus seja de seu agrado mostrar-me o que mais me convém: se me dedicar à pregação ou somente à oração.
E depois vai a Frei Silvestre e dize-lhe o mesmo".
Este fora no século aquele monsior Silvestre, que vira uma cruz de ouro sair da boca de S. Francisco, a qual era tão alta que ia até ao céu e tão larga que tocava os extremos do mundo.
Era este Frei Silvestre de tanta devoção e de tanta santidade, que tudo quanto pedia a Deus obtinha e muitas vezes falava com Deus; e por isso S. Francisco tinha por ele grande devoção. Foi Frei Masseo, e conforme a ordem de S. Francisco, deu conta da embaixada primeiramente a S. Clara e depois a Frei Silvestre. O qual, logo que a recebeu, imediatamente se pôs em oração e, rezando, obteve a resposta divina, e voltou a Frei Masseo e disse-lhe assim: "Isto disse Deus para dizeres ao irmão Francisco: que Deus não o chamou a este estado somente para si; mas para que ele obtenha fruto das almas e que muitos por ele sejam salvos".
Obtida esta resposta, Frei Masseo voltou a S. Clara para saber o que ela tinha conseguido de Deus; e respondeu que ela e outra companheira tinham obtido de Deus a mesma resposta que tivera Frei Silvestre. Com isto tornou Frei Masseo a S. Francisco; e S. Francisco o recebeu com grandíssima caridade, lavando-lhe os pés e preparando-lhe o jantar.
E depois de comer, S. Francisco chamou Frei Masseo ao bosque e ali, diante dele, se ajoelhou e tirou o capuz, pondo os braços em cruz, e perguntou-lhe: "Que é que ordena que eu faça o meu Senhor Jesus Cristo?" Respondeu Frei Masseo: "Tanto a Frei Silvestre como a Soror Clara e à irmã, Cristo respondeu e revelou que sua vontade é que vás pelo mundo a pregar, porque ele não te escolheu para ti somente, mas ainda para a salvação dos outros". E então S. Francisco, ouvindo aquela resposta e conhecendo por ela a vontade de Cristo, levantou-se com grandíssimo fervor e disse: "Vamos em nome de Deus".
E tomou como companheiros a Frei Masseo e a Frei Ângelo, homens santos. E caminhando com ímpeto de espírito, sem escolher caminho nem atalho, chegaram a um castelo que se chamava Savurniano, e S. Francisco se pôs a pregar e primeiramente ordenou às andorinhas, que cantavam, que fizessem silêncio até que ele tivesse pregado; e as andorinhas obedeceram.
E ali pregou com tal fervor que todos os homens e todas as mulheres daquele castelo, por devoção, queriam seguir atrás dele e abandonar o castelo. Mas S. Francisco não permitiu, dizendo-lhes: "Não tenhais pressa e não partais; e ordenarei o que deveis fazer para a salvação de vossas almas". E então pensou em criar a Ordem Terceira para a universal salvação de todos . E assim deixando-os muito consolados e bem dispostos à penitência, partiu-se daí e veio entre Cannara e Bevagna.
E passando além, com aquele fervor levantou os olhos e viu algumas árvores na margem do caminho, sobre as quais estava uma quase infinita multidão de passarinhos; do que S. Francisco se maravilhou e disse aos companheiros: "Esperai-me aqui no caminho, que vou pregar às minhas irmãs aves". E entrando no campo começou a pregar às aves que estavam no chão; e subitamente as que estavam nas árvores vieram a ele e todas ficaram quietas até que S. Francisco acabou de pregar; e depois não se partiram enquanto ele não lhes deu a sua bênção.
E conforme contou depois Frei Masseo a Frei Tiago de Massa, andando S. Francisco entre elas a tocá-las com a capa, nenhuma se moveu. A substancia da prédica de S. Francisco foi esta: "Minhas irmãs aves, deveis estar muito agradecidas a Deus, vosso Criador, e sempre em toda parte o deveis louvar, porque vos deu liberdade de voar a todos os lugares, vos deu urna veste duplicada e triplicada; também porque reservou vossa semente na Arca de Noé, a fim de que vossa espécie não faltasse ao mundo; ainda mais lhe deveis estar gratas pelo elemento do ar que vos concedeu.
Além disto não plantais e não ceifais; e Deus vos alimenta e vos dá os rios e as fontes para beberdes, e vos dá os montes e os vales para vosso refúgio, e as altas arvores para fazerdes vossos ninhos e, porque não sabeis fiar nem coser, Deus vos veste a vós e aos vossos filhinhos; muito vos ama o vosso Criador, pois vos faz tantos benefícios, e portanto guardai-vos, irmãs minhas, do pecado de ingratidão e empregai sempre os meios de louvar a Deus". Dizendo-lhes S. Francisco estas palavras, todos e todos estes passarinhos começaram a abrir os bicos, a estender os pescoços, e a abrir as asas, e a reverentemente inclinar as cabeças para o chão, e por seus atos e seus cantos a demonstrar que as palavras do santo pai lhes deram grandíssima alegria. E S. Francisco juntamente com elas se rejubilava, se deleitava, se maravilhava muito com tal multidão de pássaros e com a sua belíssima variedade e com a sua atenção e familiaridade; pelo que ele devotamente nelas louvava o Criador.
Finalmente, terminada a pregação, S. Francisco fez sobre elas o sinal-da-cruz e deu-lhes licença de partir; e então todas aquelas aves em bando se levantaram no ar com maravilhosos cantos; e depois, seguindo a cruz que S. Francisco fizera, dividiram-se em quatro grupos: um voou para o oriente e outro para o ocidente, o terceiro para o meio-dia, o quarto para o aquilão, e cada bando cantava maravilhosamente; significando que como por S. Francisco, gonfaloneiro da cruz de Cristo, lhes fora pregado e sobre elas feito o sinal-da-cruz, segundo o qual se dividiram, cantando, pelas quatro partes do mundo; assim a pregação da cruz de Cristo renovada por S. Francisco devia ser levada por ele e por seus irmãos a todo o mundo; os quais frades como os pássaros, nada de próprio possuindo neste mundo, confiam a vida unicamente à Providência de Deus.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Francisco orando de noite, um menino noviço viu Cristo
e a Virgem Maria e muitos outros santos falarem com ele.


Um menino muito puro e inocente foi recebido na Ordem, vivendo S. Francisco; e estava em um pequeno convento no qual por necessidade os frades dormiam dois em cada leito. Veio S. Francisco uma vez ao dito convento e de tarde, ditas Completas, foi dormir a fim de poder levantar-se à noite para orar quando os outros frades estivessem a dormir, como tinha costume de fazer. O dito menino pôs no coração espiar solicitamente a vida de S. Francisco, para poder conhecer a sua santidade e especialmente para saber o que ele fazia à noite quando se levantava.
E, para não ser enganado pelo sono, pôs-se esse menino a dormir ao lado de S. Francisco e amarrou a sua corda com a de S. Francisco, para perceber quando ele se levantasse: de nada disso S. Francisco se apercebeu. Mas à noite, no primeiro sono, quando todos os frades dormiam, S. Francisco se levantou e achou a sua corda assim atada, soltou-a tão docemente que o menino não sentiu, e saiu S. Francisco sozinho para o bosque que ficava próximo do convento, e entrou em uma cova que ali havia e ficou em oração.
Depois de algum tempo, o menino despertou e achando a corda desatada e S. Francisco levantado, levantou-se também e foi procurá-lo e, encontrando aberta a passagem que dava para o bosque, pensou que S. Francisco ali estivesse e penetrou no bosque.
E logo, chegando ao ponto onde S. Francisco orava, começou a ouvir a grande conversação: e aproximando-se mais para entender o que ouvia, chegou a ver uma luz admirável que cercava S. Francisco e nela viu Cristo e a Virgem Maria e S. João Batista e o Evangelista e grandíssima multidão de anjos, os quais falavam com S. Francisco. Vendo isto, o menino caiu no chão sem sentidos; depois, acabado o mistério daquela santa aparição, voltando S. Francisco ao convento, tropeçou no corpo do menino que jazia na estrada como morto, e por compaixão carregou-o nos braços e colocou-o no leito como faz o bom pastor com a sua ovelha.
E depois, sabendo dele como tinha visto a dita visão, ordenou-lhe que nada dissesse a ninguém enquanto ele fosse vivo. O menino crescendo, pois, em grande graça de Deus e devoção de S. Francisco, foi homem de valor na Ordem; e somente depois da morte de S. Francisco revelou aos irmãos a dita visão.
Em louvor de Cristo. Amém.
Um menino muito puro e inocente foi recebido na Ordem, vivendo S. Francisco; e estava em um pequeno convento no qual por necessidade os frades dormiam dois em cada leito. Veio S. Francisco uma vez ao dito convento e de tarde, ditas Completas, foi dormir a fim de poder levantar-se à noite para orar quando os outros frades estivessem a dormir, como tinha costume de fazer.
O dito menino pôs no coração espiar solicitamente a vida de S. Francisco, para poder conhecer a sua santidade e especialmente para saber o que ele fazia à noite quando se levantava. E, para não ser enganado pelo sono, pôs-se esse menino a dormir ao lado de S. Francisco e amarrou a sua corda com a de S. Francisco, para perceber quando ele se levantasse: de nada disso S. Francisco se apercebeu.
Mas à noite, no primeiro sono, quando todos os frades dormiam, S. Francisco se levantou e achou a sua corda assim atada, soltou-a tão docemente que o menino não sentiu, e saiu S. Francisco sozinho para o bosque que ficava próximo do convento, e entrou em uma cova que ali havia e ficou em oração. Depois de algum tempo, o menino despertou e achando a corda desatada e S. Francisco levantado, levantou-se também e foi procurá-lo e, encontrando aberta a passagem que dava para o bosque, pensou que S. Francisco ali estivesse e penetrou no bosque.
E logo, chegando ao ponto onde S. Francisco orava, começou a ouvir a grande conversação: e aproximando-se mais para entender o que ouvia, chegou a ver uma luz admirável que cercava S. Francisco e nela viu Cristo e a Virgem Maria e S. João Batista e o Evangelista e grandíssima multidão de anjos, os quais falavam com S. Francisco.
Vendo isto, o menino caiu no chão sem sentidos; depois, acabado o mistério daquela santa aparição, voltando S. Francisco ao convento, tropeçou no corpo do menino que jazia na estrada como morto, e por compaixão carregou-o nos braços e colocou-o no leito como faz o bom pastor com a sua ovelha.
E depois, sabendo dele como tinha visto a dita visão, ordenou-lhe que nada dissesse a ninguém enquanto ele fosse vivo. O menino crescendo, pois, em grande graça de Deus e devoção de S. Francisco, foi homem de valor na Ordem; e somente depois da morte de S. Francisco revelou aos irmãos a dita visão. Em louvor de Cristo. Amém.
Do maravilhoso capítulo que reuniu S. Francisco em Santa Maria dos Anjos,
onde estiveram além de cinco mil irmãos.

O fidelíssimo servo de Cristo monsior S. Francisco reuniu uma vez um capítulo geral em S. Maria dos Anjos, no qual capítulo estiveram presentes para mais de cinco mil irmãos; e veio S. Domingos, cabeça e fundador da Ordem dos frades pregadores, o qual ia então de Borgonha a Roma.
E sabendo da reunião do capítulo que S. Francisco realizava na planície de S. Maria dos Anjos, foi vê-lo com sete irmãos de sua Ordem. Esteve também no dito capítulo um cardeal devotíssimo de S. Francisco, do qual tinha profetizado que havia de ser papa, e assim foi.
O qual cardeal viera de propósito de Perusa, onde estava a corte, a Assis. E todos os dias vinha ver S. Francisco e seus frades, e algumas vezes cantava a missa, outras vezes fazia o sermão para os frades no capítulo; experimentava o dito cardeal grandíssima satisfação e devoção quando vinha visitar aquele santo colégio. E vendo naquela planície os irmãos ao redor de S. Maria, grupo em grupo, quarenta aqui, ali duzentos, além trezentos juntos, todos ocupados somente em falar de Deus e em orações, em lágrimas, em exercícios de caridade; e permanecendo com tanto silêncio e com tanta modéstia, que nenhum rumor se ouvia, nem contenda; e maravilhando-se de tal multidão com tanta ordem, com lágrimas e com grande devoção dizia: "Em verdade, este é o campo e o exército dos cavaleiros de Cristo".
Não se ouvia em tal multidão uma palavra inútil ou frívola; mas em cada lugar onde se reunia um grupo de frades, ou oravam ou diziam o ofício, ou choravam os seus pecados e os dos seus benfeitores ou tratavam da salvação da alma. E havia naquele campo cabanas de vime e de esteiras, divididas em turmas para os irmãos das diversas províncias; e por isso chamaram a este capítulo de Capítulo dos Vimes ou das Esteiras.
Os leitos deles eram a terra nua, e alguns tinham uma pouca de palha: os travesseiros eram pedras ou paus. Pelo que sentiam tanta devoção os que os ouviam ou viam e tanta era a fama de sua santidade, que da corte do papa, então em Perusa, e das outras terras do vale de Espoleto vinham vê-los muitos condes, barões e cavaleiros e outros gentis-homens e muitos populares e cardeais e bispos e abades com outros clérigos, para ver aquela santa e grande e humilde congregação, a qual o mundo nunca mais viu, de tantos santos homens juntos.
E principalmente vinham para ver o chefe e pai santíssimo de toda aquela gente, o qual furtara ao mundo tão bela presa e reunira tão belo e devoto rebanho para seguir as pegadas do venerável pastor Jesus Cristo.
Estando, pois, reunido o capítulo geral, o santo pai de todos e ministro geral S. Francisco com fervor de espírito anuncia a palavra de Deus, e prega em altas vozes o que o Espírito Santo lhe manda dizer; e por tema do sermão propôs estas palavras: "Filhos meus, grandes coisas prometemos a Deus: mas muito maiores Deus nos prometeu. Observemos o que prometemos; e esperemos com certeza as que nos foram prometidas. Breve é o deleite do mundo, mas a pena que se lhe segue é perpétua.
Pequeno é o sofrimento desta vida, mas a glória da outra vida é infinita".
E sobre estas palavras pregando devotíssimamente confortava e induzia os frades à obediência da santa madre Igreja, à caridade fraternal e a rogarem a Deus por todo o povo e a terem paciência na adversidade do mundo e temperança na prosperidade, a pureza e castidade angélica, a estarem em paz e concórdia com Deus e com os homens e com a própria consciência, e ao amor e à observância da santíssima pobreza.
E então lhes disse: "Ordeno-vos pelo mérito da santa obediência, a todos vós reunidos aqui, que nenhum de vós se preocupe com o que tenha de comer ou beber, ou com as coisas necessárias ao corpo, mas aplicai-vos somente a orar e a louvar a Deus, e toda a solicitude do corpo deixai a ele, porque ele terá especial cuidado convosco".
E todos eles receberam este mandamento com o coração alegre e com a face risonha. E terminado o sermão de S. Francisco, todos se puseram a orar. Do que S. Domingos, o qual estava presente a todas estas coisas, fortemente se maravilhou do mandamento de S. Francisco e julgou-o indiscreto, não podendo compreender como tal multidão se poderia dirigir sem ter nenhum cuidado e solicitude das coisas necessárias ao corpo.
Mas o principal pastor, Cristo bendito, querendo mostrar como cuida de suas ovelhas e tem singular amor aos seus filhos, logo e logo inspirou aos habitantes de Perusa, de Espoleto, de Foligno, de Spello e de Assis e de outras terras circunvizinhas que levassem o que comer e beber àquela santa congregação. E eis que subitamente chegam das ditas terras homens com jumentos, cavalos, carros carregados de pães e de vinho, favas, queijos e de outras boas coisas de comer, como os pobres de Cristo necessitavam. Além disso traziam toalhas, púcaros, garrafas, copos e outros vasos de que tal multidão havia mister. E bendito se considerava quem mais coisas podia trazer ou mais solicitamente servia; de modo que até os cavaleiros, os barões e outros gentis-homens, que tinham vindo para ver, com grande humildade e devoção serviam-nos também.
Pelo que S. Domingos, vendo estas coisas e verdadeiramente conhecendo que a Providência divina cuidava deles, humildemente reconheceu que julgara falsamente S. Francisco de dar ordem indiscreta; e ajoelhando-se-lhe em frente, disse-lhe humildemente sua culpa e acrescentou: "Deveras Deus dispensa cuidado especial a estes santos pobrezinhos e eu não o sabia: e de ora em diante prometo de observar a evangélica pobreza santa: e amaldiçôo da parte de Deus a todos os frades de minha Ordem, os quais na dita Ordem presumirem ter alguma coisa de próprio".
Assim ficou S. Domingos muito edificado com a fé do santíssimo Francisco e com a obediência e a pobreza de tão grande e bem ordenado colégio e da Providência divina e da copiosa abundância de todos os bens. No mesmo capítulo disseram a S. Francisco que muitos frades traziam o cilício sobre a carne e argolas de ferro; e por esse motivo muitos adoeciam e outros morriam e muitos ficavam incapazes de orar.
Pelo que S. Francisco, por ser discretíssimo pai, ordenou que por santa obediência quem tivesse cilício, ou argola de ferro, lhos trouxesse e pusesse diante dele. Assim o fizeram e foram contados para mais de quinhentos cilícios de ferro e muito mais argolas de ferro tanto para os braços como para o ventre, de maneira que fizeram um grande monte e S. Francisco os deixou lá. Depois de acabado o capítulo, S. Francisco, confortando-os para o bem e ensinando-lhes como deviam sair deste mundo malvado sem pecado, com a bênção de Deus e a dele, fê-los voltar às suas províncias, todos consolados com a letícia espiritual.
Em louvor de Cristo. Amém.
Como da vinha do padre de Rieti, em cuja casa S. Francisco rezou, devido à grande multidão que vinha a ele,foram arrancadas e colhidas as uvas; e depois miraculosamente dela se fez mais vinho do que nunca, segundo a promessa de S. Francisco. E como Deus revelou a S. Francisco que ele alcançaria o paraíso depois de sua morte.

Estando uma vez S. Francisco gravemente doente dos olhos, monsior Hugolino, cardeal protetor da Ordem, pela grande ternura que tinha por ele, escreveu-lhe que fosse procurá-lo em Rieti, onde havia ótimos médicos da vista. Então S. Francisco, recebendo a carta do cardeal, foi primeiramente a S. Damião, onde estava S. Clara, devotíssima esposa de Cristo, para levar-lhe alguma consolação e depois ir ao cardeal.
Mi estando S. Francisco, na noite seguinte, piorou de tal modo dos olhos, que não podia mais ver a luz. Não podendo, por isso, partir, S. Clara fez para ele uma cabana de caniço onde pudesse melhor repousar.
Mas S. Francisco, tanto pela dor da enfermidade como pela grande quantidade de morcegos que o incomodavam muitíssimo, de maneira nenhuma podia repousar de dia ou de noite. E sofrendo demais com aquela tribulação, começou a pensar e a reconhecer que aquilo era um flagelo de Deus pelos seus pecados; e começou a agradecer a Deus com todo o coração e com a boca, e depois gritava em altas vozes, dizendo: "Senhor meu, sou digno disto e de muito pior.
Senhor meu Jesus Cristo, bom pastor, que mostraste a tua misericórdia sobre nós dando-nos diversas penas e angústias corporais, concede-me a graça e virtude, a mim a tua ovelhinha, para que por nenhuma enfermidade e angústia ou dor me afaste de ti". E feita esta oração, ouviu uma voz do céu que disse: "Responde-me, Francisco.
Se toda a terra fosse ouro, e todos os mares, fontes e rios fossem bálsamo, e todos os montes e colinas e os rochedos fossem pedras preciosas; e achasses um outro tesouro mais nobre do que essas coisas, como o ouro é mais nobre do que a terra, e o bálsamo do que a água, e as pedras preciosas mais do que os montes e os rochedos, e te fosse dado em troca desta enfermidade este mais nobre tesouro, não devias ficar bem contente e bem alegre?" Responde S. Francisco: "Senhor, eu não sou digno de tesouro tão precioso". E disse-lhe a voz de Deus: "Rejubila-te, Francisco, porque este é o tesouro da vida eterna, o qual te reservo e desde já te garanto; e esta enfermidade e esta aflição são as arras do tesouro bendito". S. Francisco então chamou o companheiro com grandíssima alegria por tão gloriosa promessa, e disse: "Vamo-nos ao cardeal". E consolando primeiramente S. Clara com santas palavras e dela humildemente despedindo-se, tomou o caminho para Rieti.
E quando estava próximo, tal multidão de povo saiu-lhe ao encontro, que por iss6 ele não quis entrar na cidade; mas se dirigiu a uma igreja que havia perto da cidade cerca de duas milhas. Sabendo, pois, os cidadãos que ele estava na dita igreja, corriam de toda parte para vê-lo, tanto que uma vinha da dita igreja ficou toda estragada e as uvas colhidas.
Pelo que o padre muita mágoa sentiu em seu coração e arrependia-se de ter recebido S. Francisco em sua igreja. E sendo por Deus revelado a S. Francisco o pensamento do padre, mandou chamá-lo e disse-lhe: "Padre caríssimo, que quantidade de vinho te dá esta vinha por ano, quando te rende mais?" Respondeu: "Doze cargas". Disse S. Francisco: "Peço-te, padre, que suportes pacientemente a minha estada alguns dias aqui, porque acho muito repouso neste lugar; e deixa que todos colham uvas de tua vinha, pelo amor de Deus e de mim pobrezinho; e te prometo, da parte de meu Senhor Jesus Cristo, que ela te renderá este ano vinte cargas".
E a razão por que S. Francisco queria ali demorar era o grande fruto que via colherem as almas das pessoas que o vinham ver; das quais muitas se partiam inebriadas do divino amor e abandonavam o mundo.
Confiando o padre na promessa de S. Francisco, deixou a vinha entregue aos que vinham a ele.
Maravilhosa coisa! A vinha ficou toda estragada e colhida, ficando apenas alguns cachos de uvas. Vem o tempo da vindima, e o padre colhe aqueles poucos de cachos, põe-nos na dorna e os pisa e, segundo a promessa de S. Francisco, recolhe vinte cargas de ótimo vinho. No qual milagre manifestamente se dá a entender que, como pelo mérito de S. Francisco, a vinha despojada de cachos abundou em vinho, assim o povo cristão, estéril de virtudes pelo pecado, pelos méritos e doutrina de S. Francisco, muitas vezes colhe em abundância bons frutos de penitência.
Em louvor de Cristo. Amém.

De uma belíssima visão que viu um jovem frade, o qual tinha em tal abominação a túnica, que estava disposto a deixar o hábito e sair da Ordem.

Um jovem muito nobre e delicado veio para a Ordem de S. Francisco: o qual depois de alguns dias, por instigação do demônio, começou a ter tal abominação ao habito que vestia, que lhe parecia trazer um saco vilíssimo; tinha horror às mangas, abominava o capuz, e o comprimento e a grandeza lhe pareciam carga insuportável.
E crescendo-lhe assim o desgosto pela Ordem, deliberou finalmente deixar o hábito e voltar ao mundo. Tomara por costume, conforme lhe ensinara seu mestre, todas as vezes que passavam em frente do altar do convento, no qual se conservava o corpo de Cristo, ajoelharse com grande reverência e tirar o capuz e inclinar-se com os braços em cruz. Sucedeu que naquela noite, na qual devia partir e deixar a Ordem, foi-lhe preciso passar diante do altar do convento; e passando, segundo o costume, ajoelhou-se e fez reverência.
E subitamente arrebatado em espírito, foi-lhe mostrada por Deus uma maravilhosa visão: repentinamente viu diante de si passar quase infinita multidão de santos como em procissão, dois a dois, vestidos todos de belíssimo e precioso pano; e as faces deles e as mãos resplandeciam como o sol, e iam com cânticos e música de anjos, entre os quais santos havia dois mais nobremente vestidos e adornados do que todos os outros, e estavam cercados de tanta claridade, que grandíssimo assombro faziam a quem os olhava, e quase no fim da procissão viu um ornado de tanta glória que parecia um cavaleiro novo, mais honrado do que os outros. Vendo o dito jovem esta visão, maravilhava-se e não sabia o que queria dizer aquela procissão e não tinha coragem de indagar e estava estupefato de enleio. Tendo passado a procissão, ele, enchendo-se de coragem, corre em direção aos últimos, e com grande temor pergunta-lhes, dizendo: "O caríssimos, peçovos o favor de dizer-me quem são estas maravilhosas pessoas que vão nesta procissão venerável".
Responderam-lhe: "Sabe, filho, que todos nós somos frades menores que vimos agora da glória do paraíso"- E ele ainda perguntou: "Quais são aqueles dois que brilham mais do que os outros?" Responderam-lhe: "Aqueles são S. Francisco e S. Antônio: e aquele último que vês tão honrado, é um santo frade que morreu há pouco tempo; o qual, porque valentemente combateu contra as tentações e perseverou até ao fim, agora o levamos em triunfo à glória do paraíso; e estas vestes de fazendas tão belas que trajamos, foram-nos dadas por Deus em troca das ásperas túnicas as quais nós pacientemente suportamos na Ordem; e a gloriosa claridade, que vês em nós, foi-nos dada por Deus pela humildade e paciência e pela santa pobreza e obediência e castidade as quais observamos até ao fim.
E portanto, filho, não te seja molesto trazer o saial da Ordem tão frutuoso, porque, se com o saco de S. Francisco desprezares o mundo e mortificares a carne, e contra o demônio combateres valentemente, terás conosco semelhante veste e claridade de glória". E ditas estas palavras, o jovem voltou a si, e confortado pela visão expulsou de si todas as tentações e confessou a sua culpa diante do guardião e dos frades; e dai em diante desejou a aspereza da penitência e das vestes e acabou a vida na Ordem em grande santidade.
Em louvor de Cristo. Amém.

Do santíssimo milagre que fez S. Francisco, quando converteu o ferocíssimo lobo de Gúbio.

No tempo em que S. Francisco morava na cidade de Gúbio apareceu no condado de Gúbio um lobo grandíssimo, terrível e feroz, o qual não somente devorava os animais como os homens, de modo que todos os citadinos estavam tomados de grande medo, porque freqüentes vezes ele se aproximava da cidade; e todos andavam armados quando saíam da cidade, como se fossem para um combate; contudo quem sozinho o encontrasse não se poderia defender. E o medo desse lobo chegou a tanto que ninguém tinha coragem de sair da cidade.
Pelo que S. Francisco, tendo compaixão dos homens do lugar, quis sair ao encontro do lobo, se bem que os citadinos de todo não o aconselhassem: e fazendo o sinal da santa cruz, saiu. da cidade com os seus companheiros, pondo toda a sua confiança em Deus. E temendo os outros ir mais longe, S. Francisco tomou o caminho que levava ao lugar onde estava o lobo. E eis que, vendo muitos citadinos, os quais tinham vindo para ver aquele milagre, o dito lobo foi ao encontro de S. Francisco com a boca aberta: e chegando-se a ele S. Francisco fez o sinalda- cruz e o chamou a si, e disse-lhe assim: "Vem cá, irmão lobo, ordeno-te da parte de Cristo que não faças mal nem a mim nem a ninguém".
Coisa admirável! Imediatamente após S. Francisco ter feito a cruz, o lobo terrível fechou a boca e cessou de correr; e dada a ordem, vem mansamente como um cordeiro e se lança aos pés de S. Francisco como morto.
Então S. Francisco lhe falou assim: "Irmão lobo, tu fazes muitos danos nesta terra, e grandes malefícios, destruindo e matando as criaturas de Deus sem sua licença; e não somente mataste e devoraste os animais, mas tiveste o ânimo de matar os homens feitos à imagem de Deus; pela qual coisa és digno da forca, como ladrão e homicida péssimo: e toda a gente grita e murmura contra ti, e toda esta terra te é inimiga. Mas eu quero, irmão lobo, fazer a paz entre ti e eles; de modo que tu não mais os ofenderás e eles te perdoarão todas as passadas ofensas, e nem homens nem cães te perseguirão mais".
Ditas estas palavras, o lobo, com o movimento do corpo e da cauda e das orelhas e com inclinação de cabeça, mostrava de aceitar o que S. Francisco dizia e de o querer observar. Então S. Francisco disse: "Irmão lobo, desde que é de teu agrado fazer e conservar esta paz, prometo te dar continuamente o alimento enquanto viveres, pelos homens desta terra, para que não sofras fome; porque sei bem que pela fome é que fizeste tanto mal.
Mas, por te conceder esta grande graça, quero, irmão lobo, que me prometas não lesar mais a nenhum homem, nem a nenhum animal: prometes-me isto?" E o lobo, inclinando a cabeça, fez evidente sinal de que o prometia. E S. Francisco disse: "Irmão lobo, quero que me dês prova desta promessa, a fim de que possa bem confiar».
E estendendo S. Francisco a mão para receber o juramento, o lobo levantou o pé direito da frente, e domesticamente o pôs sobre a mão de S. Francisco, dando-lhe o sinal como podia. E então disse S. Francisco: "Irmão lobo, eu te ordeno em nome de Jesus Cristo que venhas agora 30 migo sem duvidar de nada, e vamos concluir esta paz em nome de Deus".
E o lobo obediente foi com ele, a modo de um cordeiro manso; pelo que os citadinos, vendo isto, muito se maravilharam. E subitamente esta novidade se soube em toda a cidade; pelo que toda a gente, homens e mulheres, grandes e pequenos, jovens e velhos, vieram à praça para ver o lobo com S. Francisco. E estando bem reunido todo o povo, S. Francisco se pôs em pé e pregou-lhe dizendo, entre outras coisas, como pelos pecados Deus permite tais pestilências; e que muito mais perigosa é a chama do inferno, a qual tem de durar eternamente para os danados, do que a raiva do lobo, o qual só pode matar o corpo; quanto mais é de temer a boca do inferno, quando uma tal multidão tem medo e terror da boca de um pequeno animal! "Voltai, pois, caríssimos, a Deus, e fazei digna penitência dos vossos pecados, e Deus vos livrará do lobo no tempo presente, e no futuro do fogo infernal". E acabada a prédica, disse S. Francisco: "Ouvi, irmãos meus; o irmão lobo, que está aqui diante de vós, prometeu-me e prestou-me juramento de fazer as pazes convosco e de não vos ofender mais em coisa alguma, se lhe prometerdes de dar-lhe cada dia o alimento necessário; e eu sirvo de fiador dele de que firmemente observará o pacto de paz".
Então todo o povo a uma voz prometeu nutri-lo continuadamente. E S. Francisco diante de todos disse ao lobo: "E tu, irmão lobo, prometes observar com estes o pacto de paz, e que não ofenderás nem aos homens nem aos animais nem a criatura nenhuma?" E o lobo ajoelha-se e inclina a cabeça, e com movimentos mansos de corpo e de cauda e de orelhas demonstra, quanto possível, querer observar todo o pacto.
Disse S. Francisco: "Irmão lobo, quero, do mesmo modo que me prestaste juramento desta promessa, fora de porias, também diante de todo o povo me dês segurança de tua promessa, e que não me enganarás sobre a caução que prestei por ti". Então o lobo, levantando a pata direita, colocou-a na mão de S. Francisco. Pelo que, depois deste fato, e de outros acima narrados, houve tanta alegria e admiração em todo o povo, tanto pela devoção do santo, e tanto pela novidade do milagre e tanto pela pacificação do lobo, que todos começaram a clamar para o céu, louvando e bendizendo a Deus, o qual lhes havia mandado S. Francisco, que por seus méritos os havia livrado da boca da besta cruel.
E depois o dito lobo viveu dois anos em Gúbio; e entrava domesticamente pelas casas de porta em porta, sem fazer mal a ninguém, e sem que ninguém lho fizesse; e foi nutrido cortesmente pela gente; e andando assim pela cidade e pelas casas, jamais nenhum cão ladrava atrás dele. Finalmente, depois de dois anos o irmão lobo morreu de velhice: pelo que os citadinos tiveram grande pesar, porque, vendo-o andar assim mansamente pela cidade, se lembravam melhor da virtude e da santidade de S. Francisco.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Francisco domesticou as rolas selvagens.

Um jovem havia apanhado um dia muitas rolas e levava-as a vender. Encontrando-o S. Francisco, o qual sempre sentia singular piedade pelos animais mansos, olhando com os olhos piedosos aquelas rolas, disse ao jovem: "Ó bom moço, peçote que mas dês, para que passarinhos tão inocentes, os quais são comparados na santa Escritura às almas castas e humildes e fiéis, não caiam nas mãos de cruéis que os matem". De repente aquele, inspirado por Deus, deu-as todas a S. Francisco; e ele recebendo-as no regaço, começou a falar-lhes docemente: "Ó irmãs minhas, rolas simples e inocentes e castas, por que vos deixastes apanhar? Agora quero livrar-vos da morte e fazer-vos ninhos, para que deis frutos e vos multipliqueis, conforme o mandamento do vosso Criador".
E vai S. Francisco e para todas fez ninhos. E elas, usando-os, começaram a pôr ovos e criar os filhos diante dos frades: e assim domesticamente viviam e tratavam com S. Francisco e com os outros frades, como se fossem galinhas sempre criadas por eles. E dali não se foram enquanto S. Francisco com sua bênção não lhes deu licença de partir. E ao moço que lhas havia dado, disse S. Francisco: "Filho, ainda serás frade nesta Ordem e servirás graciosamente a Jesus Cristo".
E assim foi; porque o dito jovem se fez frade e viveu na Ordem com grande santidade.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Francisco livrou o frade que estava em pecado com o demônio.

Estando uma vez S. Francisco em oração no convento da Porciúncula, viu, por divina revelação, todo o convento cercado e assediado pelos demônios, como se fosse por um grande exército. Mas nenhum podia, aliás, entrar dentro do convento; porque aqueles frades eram de tanta santidade, que os demônios não tinham meios de entrar neles. Mas, perseverando todavia assim, um dia um daqueles frades se escandalizou com um outro, e pensava no seu coração como poderia acusá-lo e vingar-se dele.
Pelo que, continuando ele com este mau pensamento, o demônio, achando a porta aberta, entrou no convento e montou no pescoço daquele frade. Vendo isto o piedoso e solícito pastor, o qual velava sempre por seus rebanhos, que o lobo entrara para devorar sua ovelha: mandou imediatamente chamar à sua presença aquele frade e lhe ordenou que logo deveria descobrir o veneno do ódio concebido contra o próximo, pelo qual estava nas mãos do inimigo. Pelo que atemorizado, por se ver assim compreendido pelo santo pai, descobriu todo o veneno e rancor, e reconheceu sua culpa e pediu-lhe humildemente a penitência com misericórdia, e isto feito, absolvido que foi do pecado e recebendo a penitência, imediatamente diante de S. Francisco o demônio se foi; e o frade assim livre das mãos da cruel besta, pela bondade do bom pastor, agradeceu a Deus: e, voltando corrigido e ensinado ao redil do santo pastor, viveu depois em grande santidade.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Francisco converteu à fé o sultão da Babilônia, e a cortesã que o induzia ao pecado.

S. Francisco, instigado pelo zelo da fé cristã e pelo desejo do martírio, atravessou uma vez o mar com doze de seus companheiros santíssimos, para ir diretamente ao sultão de Babilônia. E chegou a uma região de sarracenos, onde certos homens cruéis guardavam as passagens, que nenhum cristão que ali passasse podia escapar sem ser morto; como aprouve a Deus, não foram mortos, mas presos, batidos e amarrados foram levados diante do sultão. E estando diante dele S. Francisco, ensinado pelo Espírito Santo, pregou tão divinamente sobre a fé cristã, que mesmo por ela queria entrar no fogo. Pelo que o sultão começou a ter grandíssima devoção por ele, tanto pela constância de sua fé, como pelo desprezo do mundo que nele via; porque nenhum dom queria dele receber, sendo pobríssimo; e também pelo fervor do martírio que nele via.
E deste ponto em diante o sultão o ouvia com boa vontade e pediu-lhe que freqüentemente voltasse à sua presença, concedendo livremente a ele e aos seus companheiros que podiam pregar onde quisessem. E deu-lhes um sinal com o qual não podiam ser ofendidos por ninguém.
Obtida esta licença tão generosa, S. Francisco mandou aqueles seus eleitos companheiros, dois a dois, por diversas terras de sarracenos, a predicar a fé cristã; e ele com um deles escolheu um lugar. No qual chegando, entrou em um albergue para repousar: e ali havia uma mulher belíssima de corpo, mas vil de alma, a qual mulher maldita convidou S. Francisco a pecar.
E dizendo-lhe S. Francisco: "Aceito, vamos ao leito"; e ela o conduziu para o quarto. E disse S. Francisco: 'Vem comigo, levar-te-ei a um leito belíssimo". E conduziu-a a uma grandíssima fogueira que se fazia naquela casa; e no fervor de espírito despe-se e lança-se neste fogo por sobre tições inflamados, e convida a mulher para que se dispa e vá se deitar nesse leito tão macio e belo. E estando assim S. Francisco por grande espaço de tempo com semblante alegre e sem se queimar, nem mesmo se chamuscar, aquela mulher por tal milagre assombrada, e compungida em seu coração, não somente se arrependeu do pecado e da má intenção, mas até se converteu perfeitamente à fé cristã, e tornou-se de tanta santidade, que por ela muitas almas se salvaram naquela terra.
Finalmente, vendo S. Francisco que não podia obter mais fruto naquelas partes, por divina revelação se dispôs com todos os seus companheiros a retornar aos fiéis; e reunindo todos os seus voltou ao sultão e despediu-se. E então lhe disse o sultão: "Frei Francisco, de boa vontade me converteria à fé cristã, mas temo fazê-lo agora, porque se estes homens o descobrissem matariam a mim e a ti com todos os teus companheiros: mas, porque tu podes fazer muito bem, e eu tenho de resolver certas coisas de muito grande peso, não quero agora causar a tua morte e a minha, mas ensina-me como me poderei salvar, e estou pronto a fazer o que me impuseres". Disse então S. Francisco: "Senhor, separar-me-ei de vós, mas depois de chegar ao meu pais e ir ao céu pela graça de Deus, depois de minha morte, conforme a vontade de Deus, enviar-te-ei dois dos meus irmãos, dos quais receberás o santo batismo de Cristo e serás salvo, como me revelou meu Senhor Jesus Cristo.
E tu, neste espaço, desliga-te de todo impedimento, a fim de que, quando chegar a ti a graça de Deus, te encontre preparado em fé e devoção". E assim prometeu fazer e fez. Isto feito, S. Francisco retornou com aquele venerável colégio de seus santos companheiros: e depois de alguns anos S. Francisco, pela morte corporal, restituiu a alma a Deus. E o sultão adoecendo espera a promessa de S. Francisco e faz postar guardas em certas passagens, ordenando que, se dois frades aparecessem com o hábito de S. Francisco, imediatamente fossem conduzidos a ele.
Naquele tempo apareceu S. Francisco à dois frades e ordenou-lhes que sem demora fossem ao sultão e procurassem a salvação dele, segundo lhe havia prometido. Os quais frades imediatamente partiram e, atravessando o mar, pelos ditos guardas foram levados ao sultão.
E vendo-os, o sultão teve grandíssima alegria e disse: "Agora sei, na verdade, que Deus me mandou os seus servos para a minha salvação, conforme a promessa que me fez S. Francisco por divina revelação". Recebendo, pois, a informação da fé cristã, e o santo batismo dos ditos frades, assim regenerado em Cristo, morreu daquela enfermidade, e sua alma foi salva pelos méritos e operação de S. Francisco.

Como S. Francisco miraculosamente curou o leproso de alma e corpo;
 e o que a alma lhe disse subindo ao céu.

O verdadeiro discípulo de Cristo, monsior S. Francisco, vivendo nesta miserável vida, com todo seu esforço se empenhava em seguir a Cristo perfeito mestre; de onde advinha freqüentes vezes, por divina inspiração, que, de quem ele sarava o corpo, Deus na mesma hora lhe sarava a alma, tal como se lê de Cristo.
Pelo que servia não só voluntariamente os leprosos, mas havia também ordenado que os frades de sua Ordem, andando ou parando pelo mundo, servissem aos leprosos pelo amor de Cristo, o qual quis por nós ser considerado leproso: adveio em um lugar próximo ao em que morava S. Francisco, servirem os frades em um hospital a leprosos e enfermos, no qual havia um leproso tão impaciente e insuportável e arrogante que cada um acreditava certamente, e assim o era, estar possuído do demônio.
Porque aviltava com palavras e pancadas tão cruelmente a quem o servisse, e, o que era pior, com ultrajes blasfemava contra Cristo bendito e sua Santíssima Mãe, a Virgem Maria, que por nenhum preço se encontrava quem o pudesse ou quisesse servir. E ainda que os frades procurassem suportar pacientemente as injúrias e vilanias para aumentar o mérito da paciência, no entanto não podiam em sua consciência sofrer as contra Cristo e sua mãe, resolvendo por isso abandonar o dito leproso: mas não o quiseram fazer sem falar antes, conforme a Regra, com S. Francisco, o qual vivia então em um convento próximo dali. E tendo-lho explicado, S. Francisco foi procurar aquele leproso perverso; e aproximando-se dele, saúda-o, dizendo: "Deus te dê a paz, irmão meu caríssimo".
Respondeu o leproso com arrebatamento: "E que paz posso ter eu de Deus que me tirou a paz e todos os bens e me fez todo podre e asqueroso?" E S. Francisco disse: "Filho, tem paciência; porque as enfermidades do corpo nos são dadas por Deus neste mundo para a salvação da alma, pois são de grande mérito quando suportadas em paz". Responde o enfermo: "E como posso suportar com paciência o tormento contínuo que me aflige de dia e de noite? E não somente me aflige essa enfermidade, mas muito pior fazem os teus frades que me deste para me servir, e não me servem como devem". Então S. Francisco, conhecendo pela divina revelação que este leproso estava possuído do espírito mau, foi e se pôs em oração e suplicou devotamente a Deus por ele.
E terminada a oração, volta a ele e diz-lhe: "Filho, quero servir-te eu, porque não estas contente com os outros". "Esta bem, disse o enfermo; que me podes fazer mais do que os outros?" Responde S. Francisco: "Farei o que quiseres". Disse o leproso: "Quero que me laves todo o corpo; porque tenho cheiro tão ruim, que nem mesmo eu me posso suportar". Então S. Francisco mandou ferver água com muitas ervas aromáticas: depois lhe tira a roupa e começa a lavá-lo com as suas mãos, enquanto outro irmão punha-lhe água em cima.
E por divino milagre, onde S. Francisco tocava com suas mãos, desaparecia a lepra e a carne ficava perfeitamente curada. E quando começou a carne a sarar, também começou a alma a sarar; donde o leproso, vendo-se começar a curar, começou a ter grande compunção e arrependimento dos seus pecados e a chorar amarissimamente: de modo que, enquanto o corpo se limpava por fora da lepra pela lavagem com água, a alma se limpava por dentro do pecado pela contrição e pelas lágrimas. E ficando completamente sarado quanto ao corpo e quanto à alma, humildemente reconheceu sua culpa e disse chorando em altas vozes: "M de mim, que sou digno do inferno pelas vilanias e injúrias que fiz e disse aos frades e pela impaciência e pelas blasfêmias que disse contra Deus".
E perseverou por quinze dias em amargo pranto por seus pecados e em pedir misericórdia a Deus, confessando-se ao padre inteiramente. E S. Francisco, vendo um milagre tão expressivo, o qual Deus tinha operado pelas mãos dele, agradeceu a Deus e partiu-se, indo daí a terras muito distantes: porque por humildade queria fugir de toda a glória humana, e em todas as suas operações só procurava a honra e a glória de Deus e não a própria. Pois, como foi do agrado de Deus, o dito leproso, curado do corpo e da alma, após quinze dias de penitência, enfermou de outra enfermidade: e armado com os santos sacramentos da santa madre Igreja, morreu santamente; e sua alma, indo ao paraíso, apareceu nos ares a S. Francisco, que estava em uma selva em oração, e disse-lhe: "Reconheces-me?" "Quem és?", disse S. Francisco.
E ele disse: "Sou o leproso, o qual Cristo bendito sarou por teus méritos, e hoje vou à vida eterna, pelo que rendo graças a Deus e a ti. Bendito sejam tua alma e teu corpo e benditas as tuas palavras e obras: porque por ti muitas almas se salvarão no mundo: e saibas que não há dia no mundo no qual os santos anjos e os outros santos não dêem graças a Deus pelos santos frutos que tu e a Ordem tua fazeis em diversas partes do mundo: e portanto toma coragem e agradece a Deus e fica com a sua bênção". E ditas estas palavras subiu para o céu; e S. Francisco ficou muito consolado.
Em louvor de Cristo. Amém.



Como S. Francisco converteu três ladrões homicidas, e se fizeram frades;
e da nobilíssima visão que viu um deles, o qual foi santíssimo frade.


S. Francisco foi uma vez pelo deserto do burgo do Santo Sepulcro, e passando por um castelo que se chama Monte Casal, veio ter com ele um jovem nobre e delicado e disse-lhe: "Pai, tenho multa vontade de ser um dos vossos frades".
Respondeu S. Francisco: "Filho, és jovem, delicado e nobre, talvez não possas suportar a pobreza e a aspereza nossas". E ele disse: "Pai, não sois homem como eu? Como as suportais vós, assim o poderei com a graça de Cristo". Agradou muito a S. Francisco esta resposta: pelo que, bendizendo-o, imediatamente o recebeu na Ordem e lhe pôs o nome de Frei Ângelo.
E portou-se este jovem tão graciosamente, que pouco tempo depois .S. Francisco o fez guardião do convento chamado Monte Casal. Naquele tempo freqüentavam a região três famosos ladrões, os quais faziam aí muito mal; os quais vieram um dia ao dito convento dos frades e pediram ao dito Frei Ângelo que lhes desse de comer. O guardião respondeu-lhes deste modo, repreendendo-os asperamente: "Vós, ladrões e cruéis homicidas, não vos envergonhais de roubar as fadigas dos outros; mas ainda, como presunçosos e impudentes, quereis devorar as que são mandadas aos servos de Deus; que não sois talvez dignos de que a terra vos sustente; porque não tendes nenhuma reverência aos homens e a Deus que vos criou.
Ide cuidar de vossa vida e não me apareçais outra vez". Pelo que eles perturbados se partiram com grande raiva. E eis que S. Francisco chega de fora com um saco de pães e um vaso de vinho que ele e o companheiro tinham esmolado: e contando-lhe o guardião como os havia expulsado, S. Francisco fortemente o repreendeu, dizendo-lhe: "Tu te comportaste cruelmente; porque melhor se levam os pecadores a Deus com doçura do que com cruéis repreensões: donde nosso mestre Jesus Cristo, cujo Evangelho prometemos observar, disse que os sãos não têm necessidade de médico, mas os enfermos; e que não tinha vindo para chamar a penitência os justos, mas os pecadores; e por isso ele freqüentes vezes comia com eles.
E porque obraste contra a caridade e contra o santo Evangelho de Cristo, ordeno-te pela santa obediência que imediatamente apanhes este saco de pães e este vaso de vinho, e que vás atrás deles solicitamente por montes e por vales até os encontrar, e lhes apresentes de minha parte todo este pão que mendiguei e este vinho; e depois te ajoelhou-se diante deles, dizendo-lhes humildemente toda a culpa de tua crueldade; e depois lhes rogues de minha parte que não mais façam mal, mas temam a Deus, e não ofendam ao próximo e se eles fizerem isso prometo de prover-lhes em suas necessidades e de dar-lhes continuamente de comer e de beber. E quando isto lhes tiveres dito, volta aqui humildemente".
Enquanto o dito guardião foi cumprir o mandado de S. Francisco, ele se pôs em oração e pedia a Deus que abrandasse os corações daqueles ladrões e os convertesse à penitência. Aproximou-se deles o obediente guardião e apresentou-lhes o pão e o vinho; e fez e disse o que S. Francisco lhe impôs. E como aprouve a Deus, comendo aqueles ladrões a esmola de S. Francisco, juntos começaram a dizer: "Ai de nós, míseros desventurados! Que duras penas do inferno nos esperam, que vamos não somente roubando o próximo e batendo e ferindo, e ainda mais matando; e no entanto por tantos males e tão celeradas coisas, que fizemos, nenhum remorso de consciência nem temor de Deus sentimos.
E eis este santo frade vem a nós e por algumas palavras que nos disse justamente por causa de nossas malícias, nos disse humildemente a sua culpa; e além disso nos trouxe pão e vinho e tal liberal promessa do santo pai. Verdadeiramente esses frades são santos de Deus os quais merecem o paraíso, e nós somos filhos da eterna danação, e merecemos as penas do inferno e cada dia aumentamos nossa perdição, e não sabemos se, pelos pecados que temos cometido até hoje, acharemos a misericórdia de Deus". Estas, e semelhantes palavras disse um deles e os outros disseram: "Certamente dizes a verdade: mas que devemos fazer?" "Vamos, disse este, a S. Francisco; e se ele nos der esperança de que podemos achar misericórdia em Deus de nossos pecados, façamos o que ele mandar, e possamos livrar as nossas almas das penas do inferno".
Este conselho agradou aos outros, e os três de acordo se dirigiram logo a S. Francisco e disseram-lhe assim: "Pai, nós, por muitos celerados pecados que cometemos, não cremos poder achar misericórdia em Deus, mas, se tiveres alguma esperança que Deus nos receba em sua misericórdia, eis-nos, estamos prontos a fazer o que disseres e fazer penitência contigo". Então S. Francisco, recebendo-os caritativamente e com benignidade, confortou-os com muitos exemplos; e os deixando certos da misericórdia de Deus, prometeu-lhes alcançá-la de Deus, mostrando-lhes que a misericórdia de Deus é infinita: e se nós tivéssemos infinitos pecados, ainda a misericórdia de Deus é maior, segundo o Evangelho; e o apóstolo S. Paulo disse: "Cristo bendito veio a este mundo para resgatar os pecadores".
Por quais palavras e semelhantes ensinamentos os ditos três ladrões renunciaram ao demônio e às suas operações, e S. Francisco os recebeu na Ordem, e começaram a fazer grande penitência: dois deles pouco viveram após a conversão e foram ao paraíso. Mas o terceiro, sobrevivendo e repensando em seus pecados, deu-se a fazer tal penitência, que, durante quinze anos contínuos, exceto as Quaresmas comuns, as quais fazia com os outros frades, o resto do tempo, sempre três dias na semana jejuava a pão e água, andava sempre descalço e só trazia uma túnica às costas, e nunca dormia depois de Matinas.
Por esse tempo S. Francisco passou desta mísera vida. Tendo, pois, ele continuado por muitos anos com tal penitencia, eis que uma noite, após Matinas, lhe veio tanta tentação de sono, que por maneira nenhuma podia resistir ao sono e vigiar como soía. Finalmente, não podendo resistir ao sono nem orar, foi ao leito para dormir: e logo que repousou a cabeça foi arrebatado e levado em espírito a um monte altíssimo no qual havia um abismo profundíssimo, e daqui e dali penhascos lascados e aguçados e escolhos desiguais sobressaíam dos rochedos; e o aspecto deste abismo era medonho de ver-se.
E o anjo que conduzia esse frade o empurrou e o lançou por este abismo abaixo: o qual, entrechocando-se e espedaçando-se de escolho em escolho, chegou por fim ao fundo do abismo desmantelado e pulverizado, conforme lhe parecia. e jazendo mal acomodado no chão, disse-lhe aquele que o conduzia: "Levanta-te, que é preciso fazer ainda viagem maior". Respondeu-lhe o frade: "Pareces-me muito indiscreto e cruel homem, porque me vês a morrer da queda que me fez em pedaços e me dizes: 'Levanta-te"'. E o anjo, aproximando-se dele e tocando-lhe os membros, os sarou perfeitamente a todos e o curou.
E depois lhe mostrou uma planície cheia de pedras agudas e cortantes e de espinhos e de abrolhos, e disse-lhe que por toda aquela planura lhe era necessário passar a pés nus até que chegasse ao fim, no qual se via uma fornalha ardente em que devia entrar. E havendo o frade atravessado toda aquela planície com grande agonia e pena, o anjo lhe disse: "Entra nessa fornalha, porque isto te convém fazer". Respondeu ele: "Ai de mim, quanto me tens sido cruel guia, que me vês quase morto por causa desta angustiosa planície, e agora, para repouso, me mandas entrar nesta fornalha ardente!" E olhando ele viu em torno à fornalha muitos demônios com forcados de ferro nas mãos, com os quais, porque ele hesitava em entrar, o atiraram dentro subitamente.
Entrado que foi na fornalha, olha e vê um que fora seu compadre, o qual ardia inteiramente, e lhe perguntou: "Ó compadre desventurado, como vieste aqui?" E ele respondeu: "Segue um pouco mais adiante e acharás minha mulher, tua comadre, a qual te dirá a causa da nossa danação". Indo o frade um pouco além, eis que aparece a dita comadre toda abrasada e metida numa medida de trigo toda de fogo; e ele lhe perguntou: "Ó comadre desventurada e mísera, por que vieste a um tão cruel tormento? " E ela lhe respondeu: "Porque no tempo da grande fome, a qual S. Francisco havia predito, meu marido e eu falsificávamos o trigo e a aveia que vendíamos nesta medida, por isso me abraso dentro desta medida". E ditas estas palavras, o anjo que conduzia o frade tirou-o da fornalha e depois lhe disse: ``Prepara-te para uma horrível viagem que tens de fazer".
E ele se lamentava dizendo: "Õ duríssimo condutor, que não tens compaixão de mim! Vês que estou quase todo queimado da fornalha e ainda me queres levar a uma viagem perigosa". Então o anjo o tocou e ele ficou são e forte: depois o levou para uma ponte que se não podia atravessar sem grande perigo; porque ela era muito frágil e estreita, muito escorregadia e sem parapeito, e embaixo passava um rio terrível, cheio de serpentes e de dragões e de escorpiões, e lançava um grandíssimo fedor; e o anjo lhe disse: "Passa por esta ponte, que por tudo te convém passar".
Respondeu ele: "E como poderei passar sem cair neste perigoso rio?" Disse o anjo: "Vem atrás de mim e põe o pé onde vires que ponho o meu, e assim passarás bem". Passou este frade atrás do anjo, como lhe havia ensinado, até ao meio da ponte: e estando assim no meio, o anjo voou e partindo-se dele foi para um monte altíssimo, muito longe da ponte. E ele considerou bem o lugar para onde o anjo voara; mas ficando sem guia e olhando para baixo, via aqueles animais tão terríveis com as cabeças fora da água e com as bocas abertas, prontos para devorá-lo se caísse; e estava com tanto temor que não sabia o que fazer ou o que dizer; porque não podia voltar atrás ou seguir adiante.
Pelo que, vendo-se em tal tribulação e que não tinha outro refúgio senão em Deus, debruçou-se e abraçou a ponte e com todo o coração e com lágrimas recomendou-se a Deus que pela sua santíssima misericórdia o quisesse socorrer E feita a oração pareceu-lhe que lhe começavam a nascer asas; pelo que com grande alegria esperava que elas crescessem, para poder voar além da ponte aonde voara o anjo. Mas, depois de algum tempo, pelo grande desejo que tinha de passar a ponte, pôs-se a voar; e porque as asas não estavam bastante crescidas, caiu sobre a ponte e as penas lhe caíram: pelo que de novo se abraçou com a ponte, como antes, e recomendou-se a Deus.
E terminada a oração, ainda lhe pareceu ter asas; e como da primeira vez não esperou que elas crescessem perfeitamente; por isso, metendo-se a voar antes do tempo, caiu ainda sobre a ponte e as penas lhe caíram. Vendo assim que caia pela pressa de voar antes do tempo, começou a dizer consigo mesmo: "Na verdade, se tiver asas terceira vez, esperarei que elas estejam tão grandes até poder voar sem cair". E estando a pensar assim, viu-se a terceira vez com asas; e esperou muito tempo até que elas ficaram bem grandes, e pareceu-lhe que pelo primeiro e segundo e terceiro crescimento de asas, tinha esperado bem cento e cinqüenta anos ou mais.
Finalmente levanta-se pela terceira vez com todo o esforço, toma o vôo e voou para o alto ao lugar aonde tinha voado o anjo e, batendo à porta do palácio em que ele estava, o porteiro perguntou-lhe: "Quem és tu que vieste aqui?" Respondeu ele: "Eu sou frade menor". Disse o porteiro: "Espera, que eu vou chamar S. Francisco para ver se te conhece". Indo aquele a S. Francisco, ele começou a olhar as maravilhosas paredes do palácio; e eis, lhe pareciam aquelas paredes transluzirem tanta claridade, e ele via claramente os coros dos santos e o que dentro se fazia. E estando ele estupefato a olhar assim, eis que vêm S. Francisco e Frei Bernardo e Frei Egídio e, atrás deles, tal multidão de santos e santas que tinham seguido a vida deles, que quase parecia inumerável. Chegando, disse S. Francisco ao porteiro: "Deixa-o entrar, porque ele é dos meus frades".
E logo que entrou sentiu tanta consolação e tanta doçura, que esqueceu todas as tribulações que tinha tido, como se não houvessem existido. E então S. Francisco, levando-o para dentro, mostrou-lhe muitas coisas maravilhosas e depois lhe disse: "Filho, é necessário que voltes ao mundo, e aí ficaras sete dias, durante os quais te prepararás diligentemente com toda a devoção; porque, depois de sete dias, eu irei por ti, e então virás comigo para este lugar de bem-aventurados" E S. Francisco trazia um manto maravilhoso adornado de estrelas belíssimas, e seus cinco estigmas eram como cinco estrelas belíssimas e de tanto esplendor que iluminavam todo o palácio com seus raios.
E Frei Bernardo tinha à cabeça uma coroa de estrelas belíssimas, e Frei Egídio estava adornado de maravilhoso lume; e muitos outros santos frades conheceu, os quais no mundo nunca tinha visto. Despedido, pois, por S. Francisco, voltou, ainda que de má vontade, ao mundo. Despertando e estremunhando e voltando a si, os frades tocavam a Prima: de sorte que só tinha durado esta visão entre Matinas e Prima, ainda que lhe parecera durar muitos anos.
E contando em ordem ao seu guardião toda essa visão, dentro de sete dias começou a sentir febre, e no oitavo dia veio a ele S. Francisco, como lhe prometera, com grandíssima multidão de gloriosos santos e conduziu a alma dele ao reino dos bemaventurados à vida eterna.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Francisco converteu em Bolonha dois estudantes, e se fizeram frades, e depois um deles se livrou de uma grande tentação.

Indo uma vez S. Francisco à cidade de Bolonha, todo o povo da cidade correu a vô-lo; e era tal a multidão de povo, que com grande trabalho pôde chegar à praça. E estando toda a praça cheia de homens e de mulheres e de estudantes, S. - Francisco se ergueu no meio deles em um lugar elevado e começou a pregar o que o Espírito Santo lhe ditava; e pregava tão maravilhosamente, que antes parecia pregar um anjo do que um homem e pareciam as suas palavras celestiais a modo de setas agudas, as quais traspassavam tanto os corações dos que o ouviam, que por aquela prédica grande multidão de homens e mulheres se converteu à penitência.
Entre os quais estavam dois nobres estudantes da Marca de Ancona; um se chamava Peregrino e outro Riccieri; os quais dois pela dita prédica tocados no coração por divina inspiração, chegaram-se a S. Francisco, dizendo que queriam tudo abandonar no mundo e ser dos seus irmãos. Então S. Francisco, conhecendo pela revelação que eles eram mandados por Deus e que na Ordem deviam ter vida santa e considerando-lhes o grande fervor, recebeu-os alegremente, dizendo-lhes: "Tu, Peregrino, seguirás na Ordem a via da humildade, e tu, Riccieri, servirás aos frades".
E assim foi; porque Frei Peregrino não quis ser clérigo, mas leigo, ainda que fosse muito letrado e grande canonista, e pela humildade chegou a grande perfeição de virtude, de modo que Frei Bernardo, primogênito de S. Francisco, disse dele que era um dos mais perfeitos frades do mundo. E finalmente o dito Frei Peregrino, cheio de virtude, passou desta vida à vida dos bem-aventurados, com muitos milagres antes da morte e depois. E o dito Frei Riccieri devotamente e fielmente serviu aos frades, vivendo em grande santidade e humildade; e tornou-se muito familiar de S. Francisco, e muitos segredos lhe revelava S. Francisco. E depois, sendo ministro da província de Marca de Ancona, dirigiu-a muito tempo com grande paz e discrição.
Após algum tempo, Deus lhe permitiu uma grande tentação em sua alma; pelo que, atribulado e angustiado, fortemente se afligia com jejuns, com disciplinas, com lágrimas e orações, de dia e de noite, e não podia no entanto expulsar aquela tentação; mas freqüentes vezes ficava em grande desesperação, porque por ela se reputava abandonado de Deus. Estando nessa desesperação, por último remédio resolveu ir a S. Francisco, pensando assim: "Se S. Francisco me mostrar bom semblante e mostrar familiaridade como costuma, crerei que Deus terá ainda piedade de mim: mas, se não, será sinal de que estou abandonado por Deus".
Partiu, pois, e foi a S. Francisco, o qual nesse tempo estava no palácio do bispo de Assis, gravemente enfermo; e Deus lhe revelou todo o modo da tentação e da desesperação do dito Frei Riccieri, sua decisão e sua vinda. E sem demora, S. Francisco chama Frei Leão e Frei Masseo e lhes diz: "Ide já ao encontro do meu filho caríssimo Frei Riccieri e abraçai-o por mim e saudai-o e dizei-lhe que entre todos os frades que vivem neste mundo eu o amo singularmente".
Estes vão e acham no caminho Frei Riccieri e abraçam-no, dizendo que S. Francisco os tinha mandado. Pelo que tal consolação e doçura lhe entraram na alma que quase foi transportado fora de si; e agradecendo a Deus com todo o coração, caminhou e chegou ao lugar onde S. Francisco estava enfermo. E ainda que S. Francisco estivesse gravemente enfermo, não obstante, sentindo vir Frei Riccieri, levantou-se, foilhe ao encontro e abraçou-o dulcissimamente, e assim lhe falou: "Filho meu caríssimo, Frei Riccieri, entre todos os irmãos que estão neste mundo, amo-te singularmente".
E dito isto, fez-lhe o sinal-da-cruz no fronte, beijou-o ai e depois lhe disse: "Filho caríssimo, esta tentação Deus a permitiu para ganhares grande mérito; mas se não quiseres este prêmio, não a tenhas mais". Maravilhosa coisa! Logo que S. Francisco disse estas palavras, subitamente dele fugiu toda a tentação, como se em toda a sua vida nunca a tivesse tido, e ficou todo consolado.

De um arroubamento que veio a Frei Bernardo;
no qual esteve desde Matinas a Nona, sem que voltasse a si.

Quantas graças Deus faz muitas vezes aos pobres evangélicos, os quais pelo amor de Cristo abandonam o mundo, se demonstrou em Frei Bernardo de Quintavalle, o qual, depois que tomou o hábito de S. Francisco, era arrebatado freqüentes vezes em Deus pela contemplação das coisas celestiais. Sucedeu uma vez entre outras que, estando ele em uma igreja a ouvir missa e ficando com toda a mente suspensa em Deus, permaneceu tão absorto e arroubado em contemplação, que, à elevação do corpo de Cristo, nada percebeu nem se ajoelhou nem tirou o capuz como faziam os outros que lá estavam; mas sem bater os olhos, ficou assim com o olhar fixo, insensível, de Matinas a Nona.
E após Nona, voltando a si, girava pelo convento gritando com voz admirada: "Ó irmãos! O irmãos! Não há homem nesta terra, por mais nobre e maior, ao qual se lhe fosse prometido um palácio belíssimo cheio de ouro, não lhe fosse possível carregar um saco cheio de esterco para ganhar aquele tesouro tão nobre". A este tesouro celeste, prometido aos amadores de Deus, foi o dito Frei Bernardo tão elevado com a mente, que por quinze anos seguidos sempre andou com a mente e com a face levantadas para o céu: e naquele tempo não saciou a fome à mesa, bem que comesse um pouco do que lhe punham em frente, porque dizia que do que o homem não gosta não faz perfeita abstinência; mas a verdadeira abstinência é não usar das coisas que são agradáveis à boca: e com isto chegou a tal clareza e lume de inteligência, que mesmo os grandes clérigos recorriam a ele para dar solução a fortíssimas questões e a obscuras passagens de Escritura; e ele lhes esclarecia todas as dificuldades.
E porque sua mente estava inteiramente desprendida e abstraída das coisas da terra, ele, como uma andorinha, voava muito alto pela contemplação; pelo que, algumas vezes vinte dias, outras trinta, ficava sozinho nos cumes dos montes altíssimos, contemplando as coisas celestiais.
Por este motivo dizia dele Frei Egídio que não era dado aos outros homens este dom que era dado a Frei Bernardo de Quintavalle, a saber, que a voar se sustentava como a andorinha. E por esta excelente graça que tinha de Deus, freqüentes vezes S. Francisco falava voluntariamente com ele de dia e de noite: donde algumas vezes foram encontrados juntos por toda a noite arroubados' em Deus na selva, na qual se haviam recolhido a falar juntos de Deus, o que é bendito in secula, etc. Amém.

Como o demônio em forma de crucifixo apareceu muitas vezes a Frei Rufino, dizendo-lhe que perdia o bem que praticava por não ser dos eleitos à vida eterna. Do que S. Francisco, por uma revelação de Deus, foi advertido e fez reconhecer a Frei Rufino o erro em que tinha acreditado.

Frei Rufino, um dos mais nobres homens de Assis e companheiro de S. Francisco, homem de grande santidade, foi um tempo fortissimamente combatido e tentado na alma, pelo demônio, sobre a predestinação, de que ele estava todo melancólico e triste: porque o demônio lhe tinha posto no coração que estava danado e não era dos predestinados à vida eterna, e que se perdia o que ele fazia na Ordem.
Durando aquela tentação muitos dias, e ele por vergonha não a revelando a S. Francisco, sem deixar todavia de fazer as orações e a abstinência de costume; porque o inimigo lhe começou a juntar tristeza sobre tristeza, além da batalha interior, combatendo-o ainda exteriormente com falsas aparições. Pelo que de uma vez lhe apareceu em forma de crucifixo e disse-lhe: "Ó Frei Rufino, por que te afliges com penitências e orações se não és dos predestinados à vida eterna? E crê em mim, porque sei a quem escolhi e predestinei, e não creias no filho de Pedro Bernardone, se ele te disser o contrário, nada lhe perguntes sobre isso, porque nem ele nem ninguém mais o sabe, senão eu, que sou o filho de Deus: portanto crê-me com certeza que és do número dos danados; e o filho de Pedro Bernardone, teu pai, e ainda o pai dele são danados e todo aquele que o seguir está danado e enganado". Ditas estas palavras, Frei Rufino começou a ficar entenebrecido pelo príncipe das trevas e já perdia toda a fé e o amor que tinha por S. Francisco, cuidando de não lhe dizer nada.
Mas o que ao pai santo não disse Frei Rufino, revelou o Espírito Santo. Pelo que S. Francisco, vendo em espírito o tal perigo do dito frade, mandou Frei Masseo a ele; ao qual Frei Rufino respondeu: "Que tenho eu que ver com Frei Francisco?" Então Frei Masseo, todo cheio de divina sabedoria, conhecendo a falácia do demônio, disse: "Ó Frei Rufino, não sabes que Frei Francisco é como um anjo de Deus, o qual tem iluminado tantas almas no mundo e do qual recebemos a graça de Deus? Por isso quero que a todo transe vás a ele; porque vejo claramente que estás enganado pelo demônio"- E dito isto Frei Rufino levantou-se e foi a S. Francisco; e vendo-o vir de longe S. Francisco começou a gritar: "Ó Frei Rufino mauzinho, em quem acreditaste?" E Frei Rufino aproximando-se, ele lhe disse em ordem toda a tentação que tinha tido do demônio dentro e fora; mostrando-lhe claramente que aquele que lhe havia aparecido fora o demônio e não Cristo, e que por maneira nenhuma ele devia consentir em suas sugestões.
"Mas - disse S. Francisco - quando o demônio te disser ainda: 'Tu estás danado', responde-lhe: 'Abre a boca que a quero encher de esterco; e este te seja o sinal de que ele é o demônio e não Cristo: porque, desde que lhe dês tal resposta, imediatamente fugirá. E por isso ainda já devias ter conhecido que ele era o demônio, porque te endureceu o coração a todo bem, o que é próprio do seu oficio; mas Cristo bendito nunca endurece o coração do homem fiel, antes o enternece, conforme disse pela boca do profeta: 'Eu vos tomarei o coração de pedra e vos darei um coração de carne"'.
Então Frei Rufino, vendo que S. Francisco lhe dizia assim por ordem todo o modo de sua tentação, compungido por suas palavras começou a chorar fortissimamente e a venerar S. Francisco e humildemente reconheceu sua culpa de ter-lhe ocultado a tentação. E assim ficou todo consolado e confortado pelas admonições do pai santo e todo mudado para melhor. Depois finalmente lhe disse S. Francisco: "Vai, filho, e confessa-te e não deixes a ocupação da oração costumada e tem como certo que esta tentação é de grande utilidade e consolação, e em breve o experimentarás".
Voltou Frei Rufino à sua cela na floresta; e estando com muitas lágrimas em oração, eis que vem o inimigo em figura de Cristo, segundo a aparência exterior, e disse-lhe: "Ó Frei Rufino, não te disse que não confiasses no filho de Pedro Bernardone e que não te fatigasses com lágrimas e orações, porque estás danado? Que te vale afligir-te enquanto estás vivo, se depois que morreres serás danado?" E subitamente Frei Rufino respondeu ao demônio: "Abre a boca, que a quero encher de esterco". Pelo que o demônio enraivecido imediatamente partiu com tanta tempestade e comoção de pedras do monte Subásio, existente perto dali, que por grande espaço de tempo durou o desabamento das pedras que caíam em baixo; e era tão grande o choque que davam umas nas outras a rolar, que lançavam faíscas horríveis de fogo no vale; e pelo rumor terrível que faziam, S. Francisco e os companheiros saíram do convento para ver que novidade era aquela; e ainda se vê ali aquela ruína grandíssima de pedras.
Então Frei Rufino manifestamente percebeu que havia sido o demônio que o tinha enganado. E voltando a S. Francisco, de novo se lançou em terra e reconheceu sua culpa. E S. Francisco confortou-o com doces palavras e o mandou consolado à sua cela.
Na qual estando em oração devotíssimamente, Cristo bendito lhe apareceu e toda a sua alma inflamou de divino amor e disse: "Bem fizeste, filho, de crer em Frei Francisco, porque aquele que te havia contristado era o demônio; mas eu sou o Cristo teu mestre e, para te dar a certeza, dou-te este sinal: enquanto viveres, não sentirás mais tristeza nenhuma nem melancolia". E dizendo isto Cristo partiu, deixando- o com tanta alegria e doçura de espírito e elevação de mente, que passou aquele dia e a noite absorto e arroubado em Deus. E dora em diante foi tão confirmado em graça e segurança de salvação, que se mudou inteiramente em outro homem, e teria ficado dia e noite em oração a contemplar as coisas divinas, se os outros o tivessem deixado.
Pelo que dizia dele S. Francisco, que Frei Rufino tinha sido canonizado em vida por Jesus Cristo e que na presença ou na ausência dele não duvidava de chamar-lhe S. Rufino, bem que fosse ainda vivo na terra.
Em louvor de Cristo. Amém

Da bela prédica que fizeram em Assis S. Francisco e Frei Rufino, quando pregaram nus.

Vivia o dito Frei Rufino, pela contemplação continua, tão absorto em Deus, que ficara quase insensível e mudo, e caríssimas vezes falava; e também não tinha a graça nem a coragem nem a facúndia de pregar. No entanto S. Francisco uma vez mandou-o que fosse a Assis e pregasse ao povo o que Deus lhe inspirasse.
Ao que Frei Rufino respondeu: "Reverendo pai, peço-te que me perdoes e não me mandas lá; porque, como sabes, não tenho a graça de pregar, e sou simples e idiota".
Então disse S. Francisco: "Por não teres obedecido prontamente, ordeno-te pela santa obediência que nu como nasceste, somente de bragas, vás a Assis, entres numa igreja e assim nu pregues ao povo". A esta ordem Frei Rufino se despe e vai nu a Assis e entra numa igreja; feita a reverência ao altar, subiu ao púlpito e começou a pregar. Pelo que os meninos e os homens começaram a rir e disseram: "Ora, ai está, fazem tanta penitência que se tornam malucos e fora de si". Neste entrementes S. Francisco, repensando na pronta obediência de Frei Rufino, o qual era dos melhores gentis-homens de Assis, e na dura ordem que lhe dera, começou a repreender-se a si mesmo, dizendo: "De onde te vem tanta presunção, filho de Pedro Bernardone, vil homenzinho, para ordenares a Frei Rufino, o qual é dos melhores gentis-homens de Assis, que fosse nu pregar ao povo, como um louco? Por Deus; que hás de experimentar em ti o que ordenaste ao outro".
E imediatamente no fervor do espírito fica nu do mesmo modo, e vai a Assis e leva consigo a Frei Leão para carregar-lhe o hábito e o de Frei Rufino. Vendo-o da mesma forma. os assisienses escarneciam, reputando que ele e Frei Rufino tivessem endoidecido pelo excesso de penitência. Entrou S. Francisco na igreja onde Frei Rufino pregava estas palavras: "Ó caríssimos, fugi do mundo, deixai o pecado, restitui o bem alheio, se quiserdes evitar o inferno; obedecei aos mandamentos de Deus, amando a Deus e ao próximo, se quiserdes ir ao céu.
E fazei penitência, se quiserdes possuir o reino do céu". Então S. Francisco subiu ao púlpito: e começou a pregar tão maravilhosamente do desprezo do mundo, da penitência santa, da pobreza voluntária, do desejo do reino celeste e da nudez e do opróbrio da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, que todos os que ouviam a prédica, homens e mulheres em grande multidão, começaram a chorar fortissimamente com incrível devoção e compunção de coração: e não somente ali mas por toda Assis houve naquele dia tanto choro pela paixão de Cristo como nunca houvera igual.
E assim edificado e consolado o povo pelo ato de S. Francisco e Frei Rufino, S. Francisco vestiu a Frei Rufino, e a si; e assim vestidos voltaram ao convento da Porciúncula, louvando e glorificando a Deus que lhes havia dado a graça de se vencerem a si mesmos pelo desprezo próprio, e edificarem as ovelhinhas de Cristo com bom exemplo e de demonstrarem quanto o mundo é desprezível. E naquele dia cresceu tanto a devoção do povo para com eles, que bendito se considerava quem lhes podia tocar na orla do hábito.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Francisco conhecia os segredos das consciências de todos os seus irmãos, um por um.

Como Nosso Senhor Jesus Cristo disse no Evangelho: "Eu conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem a mim", etc., assim o bem-aventurado Pai S. Francisco, como bom pastor, sabia por divina revelação de todos os méritos e virtudes de seus companheiros, e assim conhecia seus defeitos; razão pela qual ele sabia prover com ótimo remédio, isto é, humilhando os soberbos e exaltando os humildes, vituperando os vícios, louvando as virtudes; como se lê nas admiráveis revelações que tivera daquela sua primitiva família.
Entre as quais se fala que uma vez estando S. Francisco com a dita família em um convento a tratar de Deus, e Frei Rufino não estando com eles naquela conversação, mas estava na floresta em contemplação; continuando a conversação sobre Deus, eis que Frei Rufino sai da floresta e passa um pouco diante deles. Então S. Francisco, vendo-o, voltou-se para os companheiros e lhes perguntou dizendo-lhes: "Dizei-me qual acreditais que seja a mais santa alma, a qual Deus tenha agora no mundo?" E respondendo-lhe acreditarem que fosse a dele, S. Francisco lhes disse: "Caríssimos irmãos, eu próprio sou o homem mais indigno e mais vil que Deus tem neste mundo; mas vedes aquele Frei Rufino, o qual sai agora da floresta? Deus me revelou que a alma dele é uma das três mais santas almas que Deus tem neste mundo; e firmemente vos digo que não duvidarei de chamar-lhe em vida S. Rufino, porque sua alma está confirmada em graça e santificada e canonizada no céu por Nosso Senhor Jesus Cristo".
E estas palavras não dizia S. Francisco em presença do dito Frei Rufino. Igualmente, como S. Francisco conhecia os defeitos de seus frades, compreende-se claramente em Frei Elias, ao qual muitas vezes repreendia pela sua soberba, e em Frei João da Capela, ao qual predisse que se devia enforcar, e naquele frade a quem o demônio apertava a garganta ao ser repreendido por desobediência, e em muitos outros frades, cujos defeitos ocultos e virtudes conhecia pela revelação de Cristo bendito. Amém.
 
Como Frei Masseo impetrou de Cristo a virtude da humildade.

Os primeiros companheiros de S. Francisco empenhavam-se com todo o esforço em ser pobres das coisas terrenas e ricos das virtudes pelas quais se chega às verdadeiras riquezas celestiais e eternas. Sucedeu um dia que, estando juntos a falar de Deus, um deles disse este exemplo: "Havia um homem que era grande amigo de Deus e tinha grande graça de vida ativa e contemplativa, e com isto tinha tão excessiva e tão profunda humildade, que se reputava grandíssimo pecador: a qual humildade o santificava e confirmava em graça e fazia-o continuamente crescer em virtude e dons de Deus, e não o deixava jamais cair em pecado".
Ouvindo Frei Masseo tão maravilhosas coisas da humildade e conhecendo que ela era um tesouro de vida eterna, começou a ficar tão inflamado de amor e desejoso desta virtude da humildade, que com grande fervor, levantando a face para o céu, fez voto e firmísimo propósito de não mais se alegrar neste mundo, enquanto não sentisse a dita virtude perfeitamente em sua alma. E desde então estava quase continuadamente encerrado na cela, macerando-se com jejuns, vigílias e grandíssimos prantos diante de Deus, para impetrar dele esta virtude sem a qual se reputava digno do inferno, e da qual aquele amigo de Deus, de quem lhe havia falado, era tão bem dotado. E ficando Frei Masseo por muitos dias com este desejo, adveio que um dia entrou na floresta, e no fervor do espírito andava por ela derramando lágrimas, suspirando e falando, pedindo a Deus com fervorosos desejos esta virtude divina.
E porque Deus de boa vontade ouve as orações dos humildes e contritos, estando assim Frei Masseo, veio uma voz do céu, a qual chamou duas vezes: "Frei Masseo, Frei Masseo"; e ele conhecendo, em espírito, que aquela era a voz de Cristo, respondeu: "Senhor meu, Senhor meu". E Cristo a ele: "Que queres dar para ter esta raça que pedes?" Respondeu Frei Masseo: "Senhor, quero dar os olhos do meu rosto". E Cristo a ele: "E eu quero que tenhas a graça e também teus olhos". E dito isto, a voz desapareceu e Frei Masseo ficou cheio de tanta graça da desejada virtude da humildade e do lume de Deus, que daí em diante estava sempre em júbilo; e freqüentes vezes, quando orava, soltava um murmúrio de júbilo com um som abafado, à semelhança das pombas: "Hu, hu, hu"; e com semblante alegre e coração jucundo, ficava assim em contemplação; e com isto, tendo-se tornado humilíssimo, se reputava o mínimo de todos os homens do mundo.
E perguntado por Frei Tiago de Fallerone por que em seu júbilo não mudava o canto, respondeu com grande letícia que quando em uma coisa se encontra todo o bem não é preciso trocá-la por outra.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Clara, por ordem do papa, benzeu o pão que estava na mesa:
pelo que em cada pão apareceu o sinal da santa cruz.

S. Clara, devotíssima discípula da cruz de Cristo e nobre planta de monsior S. Francisco, era de tanta santidade, que não somente os bispos e os cardeais, mas o próprio papa desejava com grande afeto vê-la e ouvi-la e freqüentes vezes a visitava pessoalmente.
Entre outras veio o padre santo uma vez ao mosteiro dela para ouvi-la falar das coisas celestiais e divinas; e estando assim juntos em divinos colóquios, S. Clara mandou no entanto preparar a mesa e pôr nela o pão a fim de que o santo padre o benzesse. Pelo que, terminado o entretenimento espiritual, S. Clara, ajoelhando-se com grande reverência, pediu-lhe que se dignasse benzer o pão posto na mesa. Responde o santo padre: "Soror Clara fidelíssima, quero que benzas este pão e faças sobre ele o sinal da cruz de Cristo ao qual te deste inteiramente"- S. Clara disse: "Santíssimo padre, perdoaime; que eu seria digna de muito grande repreensão se diante do vigário de Cristo, eu, que sou uma vil mulherzinha, tivesse a presunção de dar tal bênção". E o papa responde: "A fim de que isto não seja imputado à presunção, mas ao mérito de obediência, ordeno-te pela santa obediência que sobre este pão faças o sinal-da-cruz e o benzas em nome de Deus".
Então S. Clara, como verdadeira filha da obediência, aqueles pães devotíssimamente benzeu com o sinal da santa cruz. Admirável coisa de ver-se! Subitamente em todos aqueles pães apareceu o sinal-da-cruz belíssimamente gravado, e então daqueles pães uma parte foi comida e a outra conservada por causa do milagre.
E o santo padre, tendo visto o milagre, tomando do dito pão e agradecendo a Deus, partiu-se deixando S. Clara com a sua bênção. Naquele tempo vivia naquele mosteiro Soror Hortolana, mãe de S. Clara, e Soror Inês, sua irmã, ambas, com S. Clara, cheias de virtude e de Espírito Santo, e com muitas outras santas religiosas.
As quais mandava S. Francisco muitos enfermos; e elas com as suas orações e com o sinal da santa cruz a todos restituíam a saúde.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Luís, rei de França, em pessoa, com o hábito de peregrino,
foi a Perusa visitar o santo Frei Egídio.

Indo S. Luís, rei de França, em peregrinação visitar os santuários pelo mundo, e ouvindo a fama grandíssima da santidade de Frei Egídio, o qual fora dos primeiros companheiros de S. Francisco, pôs no coração e determinou por tudo visitá-lo pessoalmente.
Pela qual coisa veio a Perusa, onde habitava então o dito Frei Egídio. E chegando à porta do convento dos frades, como um pobre peregrino desconhecido com poucos companheiros, chamou com grande insistência por Frei Egídio, nada dizendo ao porteiro sobre quem fosse aquele que o chamava. Foi, pois, o porteiro a Frei Egídio e disse-lhe que à porta havia um peregrino que o procurava: e por Deus lhe foi revelado em espirito que aquele era o rei de França; pelo que subitamente ele com grande fervor sai da cela e corre à porta e sem mais pergunta, ou sem que jamais tivessem estado juntos, com grandíssima devoção ajoelhando-se abraçaram-se e beijaram-se com tanta familiaridade como se há longo tempo tivessem tido grande amizade.
No entanto, nenhum falava com o outro, mas estavam assim abraçados em silêncio com aqueles sinais de amor caritativo. E ficando como ficaram por grande espaço de tempo por esta forma, sem dizer palavra, partiram-se um do outro; e S. Luís continuou sua viagem e Frei Egídio voltou à sua cela. Partindo o rei, um frade perguntou a algum dos seus companheiros quem era aquele que se tinha abraçado tanto com Frei Egídio; e ele respondeu que era Luís, rei de França, o qual tinha vindo para ver Frei Egídio.
O que dizendo este frade aos outros irmãos, houveram eles grande melancolia porque Frei Egídio não lhe tinha dito palavra; e lamentando-se lhe disseram: "Ó Frei Egídio, por que foste tão vilão; que a um tão grande rei, o qual veio de França para ver-te e para ouvir alguma boa palavra, não disseste nada?" Respondeu Frei Egídio: "Caríssimos irmãos, não vos maravilheis por isto; porque nem ele a mim nem eu a ele podia dirigir palavra, pois logo que nos abraçamos a luz da divina sapiência revelou e manifestou a mim o coração dele e a ele o meu; e assim por operação divina olhando nos corações, o que eu queria dizer-lhe e ele a mim muito melhor ficamos conhecendo, do que se o tivéssemos falado com a boca, e com maior consolação, e se nos quiséssemos explicar com a voz o que sentíamos no coração, pelo defeito da língua, a qual não pode claramente exprimir os mistérios secretos de Deus, ternos- ia sido antes desconsolo do que consolação.
E portanto tende como certo que de mim se partiu o rei admiravelmente consolado".
Em louvor de Cristo. Amém.

Como, estando enferma, S. Clara foi miraculosamente transportada,
na noite de Natal, à igreja de S. Francisco e aí assistiu ao ofício.

Estando uma vez S. Clara gravemente enferma, tanto que não podia ir dizer o oficio na igreja com as outras freiras, chegando a solenidade da Natividade de Cristo, todas as outras foram a Matinas; e ela ficou sozinha no leito, malcontente por não poder juntamente com as outras ir- e ter aquela consolação espiritual.
Mas Jesus Cristo, seu esposo, não querendo deixá-la assim desconsolada, fê-la miraculosamente transportar à igreja de S. Francisco e assistir a todo o ofício e à missa da meia-noite; e além disto, receber a santa comunhão e depois ser trazida ao leito.
Voltando as freiras para junto de S. Clara, acabado o oficio em S. Damião, disseram-lhe: “Ó nossa mãe, Soror Clara, que grande consolação tivemos nesta noite de santa Natividade! Prouvesse a Deus que houvésseis estado conosco!" E S. Clara responde: "Graças e louvores rendo ao meu Senhor Cristo bendito, irmãs minhas e filhas caríssimas; porque a todas as solenidades desta santíssima noite e maiores do que as que assististes, assisti eu com muita consolação de minha alma; porque, por procuração do meu Pai S. Francisco e pela graça de meu Senhor Jesus Cristo, estive presente na igreja do meu Pai S. Francisco; e com as minhas orelhas corporais e mentais ouvi o canto e o som dos órgãos que aí tocaram; e lá mesmo recebi a santa comunhão.
E por tanta graça a mim concedida rejubilai-vos e agradecei a Nosso Senhor Jesus Cristo". Amém.


Como S. Francisco explicou a Frei Leão uma bela visão que este havia visto.

Uma vez em que S. Francisco estava gravemente enfermo e Frei Leão o servia, o dito Frei Leão, estando em oração perto de S. Francisco, foi arrebatado em êxtase e levado em espírito a um rio grandíssimo, largo e impetuoso. E estando a olhar quem o atravessava, viu alguns frades carregados entrar naquele rio, os quais eram subitamente abatidos pela Impetuosidade da corrente e se afogavam, outros iam até um terço, outros até ao meio do rio, outros ainda até à outra margem; todos no entanto, pela impetuosidade do rio e pelo peso que levavam às costas, finalmente caíam e se afogavam.
Vendo isto, Frei Leão tinha deles grande compaixão, mas subitamente, estando assim, eis que vem uma grande multidão de frades sem nenhuma carga ou peso de coisa nenhuma, nos quais reluzia a santa pobreza; e entraram no rio e passaram além sem nenhum perigo. E vendo isto, Frei Leão voltou a si. E então S. Francisco, sentindo em espírito Frei tinha alguma visão chamou-o que Leão visto a si e perguntou-lhe que era o que tinha visto: e logo que lhe disse Frei Leão, por ordem, toda a visão que tivera, disse S. Francisco: "O que viste é verdade. O grande rio é este mundo; os frades que se afogavam no rio são os que não seguem a profissão evangélica e especialmente quanto à altíssima pobreza; mas os que sem perigo passaram são aqueles frades que nenhuma coisa terrena nem carnal buscam nem possuem neste mundo; mas, tendo somente o viver moderado e o que vestir, estão contentes em seguir ao Cristo nu na cruz; e o peso e o jugo manso de Cristo e da santa obediência levam alegremente e voluntariamente; e assim facilmente da vida temporal passam à vida eterna"-

Como Jesus Cristo bendito, a pedido de S. Francisco, fez converter-se um rico
e gentil cavaleiro e fazer-se frade, o qual tinha feito grande honra e oferendas a S. Francisco.

S. Francisco, servo de Cristo, indo uma vez à tarde à casa de um grande gentil-homem poderoso, foi por ele recebido e hospedado, com o companheiro, como anjos do paraíso, com grandíssima cortesia e devoção.
Pelo que S. Francisco lhe tomou grande amor, considerando que ao entrar em casa o tinha abraçado e beijado amigavelmente, e depois lhe havia lavado os pés e acendido um grande fogo e preparado a mesa com muito boas iguarias; e enquanto comiam, ele com semblante alegre os servia continuamente. Ora, tendo acabado de comer S. Francisco e o companheiro, disse este gentilhomem: "Eis, meu pai, ofereço-me a vós e as minhas coisas; quando precisardes de túnica ou de manto ou de outra coisa qualquer, comprai que eu pagarei; e vede que estou pronto a prover-vos em todas as vossas necessidades, porque pela graça de Deus eu o posso, porquanto tenho em abundância todos os bens temporais, e por amor a Deus que mos deu, eu os dou de boa vontade aos seus pobres".
Pelo que, vendo S. Francisco tanta cortesia e afabilidade nele e os grandes oferecimentos, concebeu tanto amor por ele que, tendo depois partido, ia dizendo ao seu companheiro: "Em verdade este gentil-homem seria bom para a nossa companhia, o qual é tão grato e reconhecido para com Deus e tão amorável e cortês para com o próximo e os pobres. Deves saber, irmão caríssimo, que a cortesia é uma das propriedades de Deus, o qual dá seu sol e sua chuva aos justos e aos injustos por cortesia, e a cortesia é a irmã da caridade, a qual extingue o ódio e conserva o amor.
E porque reconheci neste bom homem tanta virtude divina, de boa vontade o quereria por companheiro: por isso quero que tornemos um dia a ele, se talvez Deus lhe tocar o coração e ele quiser ser nosso companheiro no serviço de Deus; e entretanto pediremos a Deus que lhe ponha no coração este desejo e lhe dê a graça de pô-lo em prática". Admirável coisa! Daí a poucos dias, feita que foi a oração por S. Francisco, Deus pôs o desejo no coração daquele gentil-homem; e disse S. Francisco ao companheiro: "Vamos, irmão meu, ao homem cortês; porque tenho certa esperança em Deus de que, com a sua cortesia das coisas temporais, ele se dará a si mesmo para nosso companheiro".
E foram, e chegando perto da casa dele, disse S. Francisco ao companheiro: "Espera-me um pouco, porque quero primeiramente pedir a Deus que torne próspero nosso caminho; e que a nobre presa, a qual pensamos de arrancar ao mundo, seja por vontade de Cristo concedida a nós pobrezinhos e débeis pela virtude de sua santíssima paixão". E dito isto, pôs-se em oração, num lugar em que pudesse ser visto pelo dito homem cortês; de onde, como prouve a Deus, olhando ele distraído para aqui e para ali, viu S. Francisco estar em oração devotíssimamente diante de Cristo, o qual com grande caridade lhe aparecera na dita oração e estava diante dele.
E via S. Francisco ser por bom espaço de tempo levantado da terra corporalmente. Pelo que ele foi tão tocado por Deus e inspirado para deixar o mundo, que no mesmo instante saiu do palácio e no fervor de espírito correu para S. Francisco e, aproximando-se dele que estava em oração, ajoelhou-se-lhe aos pés e com grandíssima instância e devoção rogou-lhe que permitisse recebê-lo para fazer penitência juntamente com ele. Então S. Francisco, vendo que sua oração era atendida por Deus e o que ele desejava aquele gentil-homem pedia com instância, pôs-se em pé e em fervor e letícia de espírito o abraça e beija devotamente, agradecendo a Deus, o qual tinha aumentado sua companhia com um tão perfeito cavaleiro.
E dizia aquele gentil-homem a S. Francisco: "Que ordenas que eu faça, pai meu? Eis, estou pronto para dar aos pobres, por tua ordem, o que possuo e a seguir contigo a Cristo, descarregado de todas as coisas temporais". E assim fez que, segundo a ordem de S. Francisco, distribuiu seus bens aos pobres e entrou na Ordem e viveu em grande penitência e santidade de vida e conversação honesta.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como S. Francisco conheceu em espiritoque Frei Elias estava danado e devia morrer fora da Ordem: razão por que, a pedido de Frei Elias, fez oração a Cristo por ele e foi atendido.

Habitando uma vez juntos, de família, em um convento, S. Francisco e Frei Elias, foi revelado por Deus a S. Francisco que Frei Elias estava danado e devia apostatar da Ordem e finalmente morrer fora da Ordem. Pela qual coisa S. Francisco concebeu um tal desprazer para com ele, tanto que lhe não falava nem com ele conversava; e se advinha alguma vez que Frei Elias se dirigisse ao seu encontro, ele torcia o caminho e ia para o outro lado, a fim de não se encontrar com ele.
Pelo que Frei Elias começou a perceber e compreender que S. Francisco estava desgostoso com ele; e querendo saber a razão, um dia procurou S. Francisco para falar-lhe; e esquivando-se S. Francisco, Frei Elias reteve-o cortesmente por força e começou a rogar-lhe com instância que se dignasse explicar-lhe o motivo pelo qual se esquivava assim de sua companhia e de falar com ele. E S. Francisco lhe respondeu: "A causa é esta; porque me foi revelado por Deus que tu pelos teus pecados apostatarias da Ordem e morrerias fora da Ordem; e ainda Deus me revelou que tu estás danado".
Ouvindo isto Frei Elias, disse assim: "Meu venerando pai, peço-te pelo amor de Jesus Cristo que por isso não me evites nem me expulses de ti; mas, como bom pastor, a exemplo de Cristo, busques e recebas a ovelha que perecerá se não a ajudares; e pede a Deus por mim que, se puder ser, revogue a sentença da minha danação; porque está escrito que Deus fará mudar a sentença, se o pecador se arrepender do pecado; e eu tenho tanta confiança em tua oração, que, se estivesse no meio do inferno e tu fizesses oração a Deus por mim, sentiria algum refrigério; e ainda te peço que me recomendes a mim, pecador, a Deus, o qual veio para salvar os pecadores, que ele me receba em sua misericórdia" - E isto dizia Frei Elias com grande devoção e lágrimas.
Pelo que S. Francisco, como pai piedoso, lhe prometeu pedir a Deus por ele e assim fez. E rogando a Deus devotíssimamente por ele, conheceu pela revelação que a sua oração era por Deus atendida quanto à revogação da sentença da danação de Frei Elias e que finalmente a alma dele seria salva, mas que com certeza ele sairia da Ordem, e fora da Ordem morreria- E assim aconteceu; porque, rebelando-se contra a Igreja Frederico, rei da Sicília, e sendo excomungado pelo papa ele e todo aquele que lhe desse ajuda e conselho, o dito Frei Elias, o qual era reputado como um dos homens mais sábios do mundo, chamado pelo dito rei Frederico, acompanhou-o e tornou-se rebelde contra a Igreja e apóstata da Ordem: pela qual coisa foi excomungado pelo papa e privado do hábito de S. Francisco. E estando assim excomungado enfermou gravemente: de cuja enfermidade sabendo um seu irmão frade leigo, o qual tinha ficado na Ordem e era homem de boa e honesta vida, foi visitá- lo e entre outras coisas disse-lhe: "Irmão meu caríssimo, muito me aflijo por estares excomungado e fora da Ordem e assim morrerás; mas se sabes do meio ou modo pelo qual eu te possa tirar deste perigo, de boa vontade não pouparei por ti qualquer fadiga".
Respondeu Frei Elias: "Irmão meu, não vejo outro modo, se não que vás ao papa e lhe peças pelo amor de Deus e de S. Francisco seu servo, por cujos ensinamentos abandonei o mundo, que me absolva da excomunhão e me restitua o hábito da religião". Disse aquele seu irmão que de boa vontade trabalharia pela sua salvação: e partindo-se dele, foi aos pés do santo padre, pedindo-lhe humildemente que fizesse graça ao seu irmão pelo amor de Cristo e de S. Francisco seu servo. E como prouve a Deus, o papa permitiu que ele voltasse, e encontrasse Frei Elias vivo, o absolvesse de sua parte da excomunhão e restituísse o hábito.
Pelo que ele alegre e com grande pressa voltou a Frei Elias e achou-o vivo, mas quase a morrer, e o absolveu da excomunhão; e ao entregar-lhe o hábito, Frei Elias passou desta vida, e sua alma foi salva pelos méritos e a oração de S. Francisco, na qual Frei Elias tinha tido tão grande esperança.
Em louvor de Cristo. Amém.

Da maravilhosa prédica, a qual fez S. Antônio de Pádua em consistório.

O maravilhoso vaso do Espírito Santo, monsior S. Antônio de Pádua, um dos discípulos escolhidos e companheiros de S. Francisco, ao qual S. Francisco chamava seu vigário, pregando uma vez em consistório diante do papa e dos cardeais (no qual consistório havia homens de diversas nações, isto é, gregos, latinos, franceses, alemães, eslavos e ingleses e de outras diversas línguas do mundo); inflamado do Espírito Santo tão eficazmente, tão devotamente, tão sutilmente, tão docemente e tão claramente e intuitivamente expôs e falou a palavra de Deus, que todos os que estavam em consistório, conquanto usassem línguas diversas, claramente lhe entendiam as palavras distintamente como se ele tivesse falado na lingua de cada um, e todos estavam estupefatos e lhes parecia que se havia renovado o antigo milagre dos apóstolos no tempo de Pentecostes, os quais falavam por virtude do Espírito Santo em todas as línguas.
E diziam juntos um para o outro com admiração: "Não é de Espanha este que prega? E como ouvimos nós em seu falar o nosso idioma?" O papa semelhantemente considerando e maravilhando-se da profundeza das palavras dele, disse: "Este é verdadeiramente arca do Testamento e armário da Escritura divina".
Em louvor de Cristo. Amém.

Do milagre que Deus fez quando S. Antonio, estando em Rímini, pregou aos peixes do mar.

Querendo Cristo bendito demonstrar a grande santidade do seu fidelíssimo servo S. Antônio, e como devotamente devia ser ouvida sua pregação e sua doutrina santa, pelos animais irracionais, uma vez entre outras, isto é, pelos peixes, repreendeu a insensatez dos infiéis heréticos, como antigamente no Antigo Testamento, pela boca da jumenta, repreendera a ignorância de Balaão.
Pelo que, estando uma vez S. Antônio em Rímini, onde havia grande multidão de heréticos, querendo reduzi-los ao lume da verdadeira fé e ao caminho da verdade, por muitos dias lhes pregou e disputou sobre a fé cristã e a santa Escritura: no entanto eles não consentindo em suas santas palavras, e mesmo como endurecidos e obstinados não querendo ouvilo, S. Antônio um dia por divina inspiração dirigiu-se à foz do rio, junto do mar, e estando assim na praia entre o mar e o rio, começou a dizer a modo de prédica, da parte de Deus, aos peixes: "Ouvi a palavra de Deus, vós, peixes do mar e do rio, pois que os infiéis heréticos esquivam-se de ouvi-la". E dito que foi, subitamente aproximou-se dele na praia tal multidão de peixes grandes, pequenos e médios, como nunca naquele mar e naquele rio foi vista outra multidão tão grande, e todos tinham a cabeça fora da água e todos estavam atentos para a face de S. Antônio e todos em grandíssima paz e mansuetude e ordem: porque na frente e mais perto da praia estavam os peixinhos menores e atrás deles estavam os peixes médios; depois ainda mais atrás, onde era a água mais profunda, estavam os peixes maiores.
Estando pois em tal ordem e disposição colocados os peixes, S. Antônio começou a pregar solenemente e a dizer assim: "Meus irmãos peixes, muito obrigados estais, segundo a vossa possibilidade, de agradecer ao vosso Criador que vos deu tão nobre elemento para vossa habitação, porque, como for do vosso agrado, tendes água doce e salgada; deu-vos muitos refúgios para fugirdes das tempestades; deu-vos ainda elemento claro e transparente e cibo pelo qual podeis viver. Deus vosso Criador cortês e benigno, quando vos criou, deu-vos como mandamento de crescerdes e multiplicardes, e deu-vos a sua bênção; pois, quando foi do dilúvio geral, todos os outros animais morrendo, a vós somente Deus conservou sem dano. E ainda vos deu barbatanas para irdes aonde for do vosso agrado.
A vós foi concedido por ordem de Deus conservar Jonas e depois do terceiro dia lançá-lo em terra são e salvo. Oferecestes o censo a Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual como pobrezinho não tinha com que pagar. Depois servistes de alimento ao eterno rei Jesus Cristo antes e depois da ressurreição, por singular mistério. Pelas quais coisas todos muito deveis louvar e bendizer a Deus que vos deu tantos e tais benefícios, mais do que às outras criaturas". A tais e semelhantes palavras e ensinamentos de S. Antônio começaram os peixes a abrir as bocas e inclinar as cabeças e com estes e outros sinais de reverência, segundo o modo que puderam, louvaram a Deus.
Então S. Antônio, vendo tanta reverência dos peixes para com Deus Criador, rejubilando-se em espírito, em alta voz disse: "Bendito seja Deus eterno, porque mais o honram os peixes aquáticos do que os homens heréticos e melhor escutam a sua palavra os animais do que os homens infiéis". E tanto S. Antônio mais pregava quanto a multidão dos peixes mais crescia e nenhum se partia do lugar que ocupara. A este milagre começou a acorrer o povo da cidade, vieram mesmo os sobreditos heréticos. Os quais, vendo milagre tão maravilhoso e manifesto, compungidos em seus corações, todos se lançaram aos pés de S. Antônio para ouvir-lhe a prédica.
Então S. Antônio começou a pregar sobre a fé católica, e tão nobremente pregou, que todos aqueles hereges converteu e os fez voltar à verdadeira fé cristã; e todos os fiéis ficaram com grandíssima alegria confortados e fortificados na fé. E feito isto S. Antônio despediu os peixes com a bênção de Deus e todos se partiram com maravilhosos atos de alegria e do mesmo modo o povo.
E depois S. Antônio esteve em Rímini por muitos dias pregando e fazendo muito fruto espiritual de almas.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como o venerável Frei Simão livrou de uma grande tentação um frade,
o qual por esta razão queria sair fora da Ordem.

No princípio da Ordem, vivendo S. Francisco, veio à Ordem um jovem de Assis, o qual foi chamado Frei Simão, ao qual Deus adornou e dotou de tanta graça, e de tanta contemplação e elevação de mente, que toda a sua vida era um espelho de santidade, segundo ouvi dos que por muito tempo estiveram com ele. Este raríssimas vezes era visto fora da cela e, se algumas vezes estava com os irmãos, sempre falava de Deus.
Nunca tinha aprendido gramática e no entanto tão profundamente e tão altamente falava de Deus e do amor de Cristo, que as suas palavras pareciam palavras sobrenaturais. Pelo que numa tarde, tendo ido à floresta com Frei Tiago de Massa para falar de Deus e falando dulcissimamente do divino amor, esteve toda a noite naquele falar; e pela manhã lhes parecia ter passado pouquíssimo tempo segundo me narrou o dito Frei Tiago. E o dito Frei Simão tinha em tanta suavidade e doçura do Espírito Santo as divinas iluminações e visitas de Deus, que freqüentes vezes, quando as sentia vir, deitava-se no leito; porque a tranqüila suavidade do Espírito Santo requeria dele não somente o repouso da mente, mas também o do corpo.
E nestas tais visitas divinas ele era muitas vezes arroubado em Deus e ficava todo insensível às coisas corporais. E uma vez em que estava assim arroubado em Deus e insensível ao mundo, ardia dentro do divino amor e não sentia nada de fora com os sentimentos corporais; um frade, querendo fazer experiência e ver se era como parecia, foi e levou um carvão em brasa e lho pôs no pé nu; e Frei Simão nada sentiu e não ficou com sinal nenhum no pé, não obstante ter estado aí por muito tempo e ter-se apagado por si mesmo.
O dito Frei Simão, quando se punha à mesa, antes de tomar o cibo corporal, tomava para si e dava o cibo espiritual, falando de Deus. Por cujo devoto falar se converteu uma vez um jovem de S. Severino, o qual era no século um jovem vaníssimo e mundano e era nobre de sangue e multo delicado de corpo. E Frei Simão, recebendo o dito jovem na Ordem, guardou consigo as suas vestes seculares; e ele estava com Frei Simão para ser instruído nas observâncias regulares. Pelo que o demônio, o qual procura estropiar todo bem, pôs sobre ele tão forte aguilhão e tão ardente tentação da carne, que por nenhum modo ele podia resistir.
Pela qual coisa ele se foi a Frei Simão e disse-lhe: "Restitui-me as vestes que trouxe do século, porque eu não posso mais suportar a tentação carnal". E Frei Simão, tendo grande compaixão dele, disse-lhe: "Assenta-te, filho, aqui um pouco comigo". E começou a lhe falar de Deus de forma que toda a tentação se partiu; e depois de certo tempo voltando a tentação, ele pedindo-lhe as vestes, Frei Simão a repelia com o falar de Deus.
E isto acontecendo muitas vezes, finalmente uma noite o assaltou tão forte a dita tentação, mais do que soía, que por coisa nenhuma deste mundo não podendo resistir foi-se a Frei Simão, pedindo-lhe por tudo as vestes seculares, porque de modo nenhum podia ficar. Então Frei Simão, como costumava, o fez sentar-se ao seu lado e falando-lhe de Deus, o jovem encostou a cabeça no peito de Frei Simão por melancolia e tristeza. Então Frei Simão, pela grande compaixão que dele tinha, levantou os olhos ao céu e rogando a Deus devotíssimamente por ele, foi arrebatado e ouvido de Deus; pelo que, voltando ele a si, o jovem sentiu-se de todo livre daquela tentação como se nunca a tivesse sentido. Sendo assim mudado o ardor da tentação em ardor do Espírito Santo, porque ele se havia encostado ao carvão aceso, isto é, a Frei Simão, inflamou-se todo no amor de Deus e do próximo; de tal modo que, tendo sido preso uma vez um malfeitor a quem deviam tirar ambos os olhos, ele por compaixão se dirigiu ousadamente ao reitor em pleno conselho e com muitas lágrimas e orações devotas pediu que lhe tirassem um olho e ao malfeitor outro, para que ele não fosse totalmente privado da vista.
Mas vendo o reitor com o conselho o grande fervor da caridade daquele frade, perdoou a um e a outro. Estando um dia o dito Frei Simão na floresta em oração e sentindo grande consolação na alma, um bando de gralhas com o seu gritar começou a distraí-lo: pelo que ele ordenou em nome de Deus que deviam partir e não mais tornar.
E partindo-se então os ditos pássaros, dora em diante não mais foram vistos nem ouvidos, nem ali nem nos arredores. E este milagre foi manifestado a toda a custódia de Fermo, na qual estava o dito convento.
Em louvor de Cristo. Amém.
 
Dos belos milagres que Deus fez pelos santos frades, Frei Bentivoglio,
e Frei Pedro de Monticello e Frei Conrado de Offida:  e corno Frei Bentivoglio carregou um leproso por quinze milhas em pouquíssimo tempo, e ao outro falou S. Miguel e ao outro veio a Virgem Maria e colocou-lhe o filho nos braços.

A província da Marca de Ancona foi antigamente, do mesmo modo que o céu de estrelas, adornada de santos e exemplares frades; os quais, como luminárias do céu, iluminaram e adornaram a Ordem de S. Francisco e o mundo com exemplos e com doutrina.
Entre outros foi em primeiro lugar Frei Lúcido, o antigo, o qual foi verdadeiramente luzente de santidade e ardente pela caridade divina; cuja maravilhosa lingua informada pelo Espirito Santo fazia maravilhosos frutos de pregação. Um outro foi Frei Bentivoglio de S. Severino, o qual foi visto por Frei Masseo ser levantado no ar por muito tempo, estando ele em oração na floresta; pelo qual milagre o dito Frei Masseo, sendo então pároco, deixou a paróquia e fez-se frade menor; e foi de tanta santidade que fez muitos milagres na vida e na morte, e seu corpo repousa em Murro. O sobredito Frei Bentivoglio, vivendo uma vez sozinho em Trave Bonanti, para vigiar e servir a um leproso, tendo ordem do prelado para sair dali e ir a um outro lugar, distante quinze milhas, não querendo abandonar o leproso, com grande fervor de caridade tomou-o e carregou-o nos ombros e levou-o da aurora ao sol poente, por toda aquela estrada de quinze milhas até ao dito lugar aonde fora mandado, que se chamava Monte Sancino.
A qual viagem, se ele fosse águia, não teria podido em tão pouco tempo voar; e por este divino milagre houve grande assombro e admiração em todo aquele pais. Um outro foi Frei Pedro de Monticello, o qual foi visto por Frei Servodeo de Urbino (então seu guardião no antigo convento de Ancona), levantado da terra corporalmente cinco ou seis braços até aos pés do Crucifixo, diante do qual estava em oração.
Este Frei Pedro, jejuando uma vez na Quaresma de S. Miguel Arcanjo com grande devoção, e no último dia daquela Quaresma estando na igreja em oração, foi ouvido por um frade jovem o qual de propósito estava escondido sob o altar-mor para ver algum ato de sua santidade) a falar com S. Miguel Arcanjo, e as palavras que eles diziam eram estas.
Dizia S. Miguel: "Frei Pedro, tu te hás afadigado fielmente por mim e de muitos modos tens afligido teu corpo: eis, vim consolar-te, para que peças a graça que quiseres e eu a impetre de Deus". Respondeu Frei Pedro: "Santíssimo príncipe da milícia celestial e fidelíssimo zelador do amor divino e piedoso protetor das almas, peço-te a graça de impetrares a Deus o perdão dos meus pecados".
Respondeu S. Miguel: "Pede outra graça, que esta alcançarei facilmente para ti". E Frei Pedro não pedindo mais nada, o arcanjo concluiu: "Eu, pela fé e devoção que tens em mim, obterei para ti esta graça e outras muitas". Acabada a conversação, a qual durou muito tempo, o arcanjo S. Miguel partiu-se, deixando-o sumamente consolado.
No tempo deste Frei Pedro santo existiu o santo Frei Conrado de Offida, os quais estando juntos em família no convento de Forano, da custódia de Ancona, o dito Frei Conrado foi um dia à floresta para a contemplação de Deus, e Frei Pedro secretamente seguiu atrás dele para ver o que advinha; e Frei Conrado começou a estar em oração e rogar devotíssimamente à Virgem Maria com grande pranto que ela lhe obtivesse a graça do seu bendito filho, para que ele sentisse aquela doçura que sentiu S. Simeão no dia da Purificação, quando tomou aos braços Jesus salvador bendito. E feita esta oração, a misericordiosa Virgem Maria o atendeu, e eis que apareceu a rainha do céu com seu filho bendito no braço com grandíssima claridade de luz; e, aproximando-se de Frei Conrado, pôs-lhe no braço aquele bendito filho, o qual devotíssimamente recebendo e abraçando e beijando e cingindo ao peito, todo se derretia e consumia em amor divino e inexplicável consolação: e Frei Pedro semelhantemente, o qual escondido via tudo, sentia na alma grandíssima doçura e consolação.
E partindo-se a Virgem Maria de Frei Conrado, Frei Pedro às pressas voltou ao convento para não ser visto por ele: mas depois, quando Frei Conrado voltava todo alegre e jucundo, disse-lhe Frei Pedro: "Ó célico, grande consolação tiveste hoje".
Disse Frei Conrado: "Que é que dizes, Frei Pedro? Que sabes do que me aconteceu?" "Bem sei, bem sei, dizia Frei Pedro, como a Virgem Maria com o seu bendito filho te visitou". Então Frei Conrado, o qual, com verdadeira humildade, desejava estar em segredo nas graças de Deus, pediu-lhe que não dissesse a ninguém. E foi tão grande o amor daquela hora em diante entre os dois, que pareciam ter em todas as coisas uma mesma alma e um mesmo coração. E o dito Frei Conrado uma vez, no convento de Sirolo, com as suas orações livrou uma mulher possessa orando por ela toda a noite e aparecendo à sua mãe, e pela manhã fugiu para não ser encontrado e honrado pelo povo.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como Frei Conrado de Offida converteu um jovem frade que molestava os outros frades. E como o dito frade jovem, tendo morrido, apareceu ao dito Frei Conrado, pedindo que rezasse por ele, e como o livrou por suas orações das penas grandíssimas do purgatório.

O dito Frei Conrado de Offida, admirável zelador da pobreza evangélica e da Regra de S. Francisco, foi de tão religiosa vida e de tanto mérito para com Deus, que Cristo bendito em vida e na morte o honrou com muitos milagres; entre os quais uma vez tendo ido como forasteiro ao convento de Offida, os frades pediram-lhe pelo amor de Deus e da caridade que admoestasse um frade jovem que havia naquele convento, o qual procedia tão infantilmente e desordenadamente que perturbava Os velhos e os jovens daquela família, e do oficio divino e das outras regulares observâncias pouco ou nada se importava.
Pelo que Frei Conrado, por compaixão daquele jovem e pelos pedidos dos frades, chamou à parte o dito jovem e com fervor de caridade lhe disse tão eficazes e devotas palavras de admoestação, que com a operação da divina graça ele subitamente se mudou de moço em velho de costumes e tão obediente e benigno e solicito e devoto, e ainda tão pacífico e serviçal, e tão cuidadoso para com todas as coisas de virtude, que, como primeiramente toda a família vivia perturbada por ele, assim depois todos estavam contentes e consolados e grandemente o amavam. Adveio, como aprouve a Deus, que poucos dias depois desta conversão o dito jovem morreu; do que os ditos frades muito se lamentaram, e poucos dias depois da morte sua alma apareceu a Frei Conrado, estando ele devotamente em oração, diante do altar do dito convento, e o saudou devotamente como a seu pai; e Frei Conrado lhe perguntou: «Quem és?" Respondeu: "Eu sou a alma daquele frade jovem que morreu há dias".
E Frei Conrado: "Ó filho caríssimo, que é feito de ti?" Respondeu ele: ' Pela graça de Deus e pela vossa doutrina vou bem, porque não estou danado: mas por certos pecados meus, os quais não tive tempo de purgar suficientemente, suporto grandíssimas penas no purgatório: mas te peço, pai, que, como por tua piedade me socorreste quando eu era vivo, assim agora queiras socorrer-me nas minhas penas, dizendo por mim algum painosso, porque a tua oração é muito aceita de Deus".
Então Frei Conrado, consentindo benignamente no pedido e dizendo por ele uma vez o pai-nosso com requiem aeternam, disse aquela alma: "Ó pai caríssimo, quanto bem e quanto refrigério eu sinto! Peço-te que o digas uma outra vez". E Frei Conrado disse e, dito que foi, disse a alma: "Santo pai, quando tu rezas por mim, sinto-me todo aliviado; pelo que te peço que não cesses de rezar por mim"- Então Frei Conrado, vendo que aquela alma era tão ajudada pelas suas orações, disse por ela cem pai-nossos e tendo terminado, disse aquela alma: "Agradeço-te, pai caríssimo, da parte de Deus pela caridade que tiveste comigo; porque pelas tuas orações estou livre de todas as penas e me vou ao reino celestial".
E dito isto partiu aquela alma. Então Frei Conrado, para dar alegria e conforto aos frades, lhes contou por ordem toda aquela visão.
Em louvor de Cristo bendito. Amém.
Capítulo 44

Como a Frei Conrado apareceu a mãe de Cristo e S. João Evangelista e S. Francisco; e lhe disseram qual deles sofreu maior dor da paixão de Cristo.

No tempo em que moravam juntos na custódia de Ancona, no convento de Forano, os sobreditos Frei Conrado e Frei Pedro os quais eram duas luzentes estrelas na província da Marca e dois homens celestiais); entre os dois havia tanto amor e tanta caridade, que parecia terem ambos o mesmo coração e uma mesma alma, e se ligaram por este pacto, que qualquer consolação que a misericórdia de Deus lhes desse, deviam revelar um ao outro por caridade.
Firmado entre ambos este pacto, sucedeu que um dia estando Frei Pedro em oração e pensando devotamente na paixão de Cristo, e como a Beatíssima Mãe de Cristo e S. João, diletíssimo discípulo, e S. Francisco estivessem pintados ao pé da cruz, pela dor mental crucificados com Cristo, teve ele o desejo de saber qual dos três tinha sofrido dor maior com a paixão de Cristo; se a mãe, que o tinha gerado, ou o discípulo, o qual havia dormido sobre o peito, ou S. Francisco, que com ele estava crucificado.
E permanecendo nesse devoto pensamento, aparece-lhe a Virgem Maria com S. João Evangelista e com S. Francisco, vestidos de nobilíssimas vestes de glória bem-aventurada; mas S. Francisco parecia vestido de vestes mais belas do que S. João.
E estando Frei Pedro todo espantado com esta visão, S. João o confortou e disse-lhe: "Não temas, caríssimo irmão, pois vimos consolar-te e esclarecer a tua dúvida. Sabe, pois, que a mãe de Cristo e eu sobre todas as criaturas sofremos com a paixão de Cristo; mas depois de nós S. Francisco teve dor maior do que outro qualquer; e por isso tu o vês com tanta glória". E Frei Pedro perguntou-lhe: "Santíssimo apóstolo de Cristo, por que a veste de S. Francisco parece mais bela do que a tua?" Respondeu S. João: "A razão é esta; porque, quando ele estava no mundo, trouxe consigo vestes mais vis do que eu".
E ditas estas palavras, S. João deu a Frei Pedro uma veste gloriosa, a qual nas mãos trazia, e disse: "Toma esta veste a qual trouxe para te dar". E querendo S. João vesti-lo com aquela veste, Frei Pedro estupefato caiu no chão e começou a gritar: "Frei Conrado, Frei Conrado caríssimo, socorre-me depressa; vem ver coisas maravilhosas".
E com estas palavras aquela santa visão desapareceu.
Depois, vindo Frei Conrado, ele lhe contou ordenadamente todas as coisas e agradeceram a Deus.
Capítulo 45

Da conversão e vida e milagres e morte do santo Frei João da Pena.

Frei João da Pena, sendo menino e escolar na província da Marca, uma noite lhe apareceu um menino belíssimo e chamou-o dizendo-lhe: "João, vai a S. Estêvão, onde prega um dos frades menores, em cuja doutrina crê e a cujas palavras atende, porque lá o mandei.
E feito isto, tens de fazer uma grande viagem e depois voltaras a mim". Pelo que imediatamente se levantou e sentiu grande mudança na alma, e foi a S. Estêvão e achou uma grande multidão de homens e mulheres que foram ouvir a prédica. E quem devia pregar era um frade que tinha o nome de Frei Filipe, o qual era um dos primeiros frades que tinham vindo à Marca de Ancona (e ainda poucos conventos havia na Marca) - Sobe ao púlpito Frei Filipe para pregar e prega devotíssimamente, não com palavras de sapiência humana, mas em virtude do espírito de Cristo, anunciando o reino da vida eterna.
E terminada a prédica, o dito menino aproximou-se do dito Frei Filipe e disse-lhe: "Pai, se vos aprouver receber-me na Ordem, eu de boa vontade farei penitência e servirei a Nosso Senhor Jesus Cristo". Vendo Frei Filipe e percebendo no dito menino uma maravilhosa inocência e pronta vontade de servir a Deus, disse-lhe: "Vai ter comigo tal dia a Ricanati e farei que te recebam; no qual convento se deve reunir capítulo provincial». Pelo que o menino, o qual era puríssimo, pensou que esta fosse a grande viagem que devia fazer segundo a revelação que lhe fora feita, e depois ir-se ao paraíso; e assim acreditava suceder logo que fosse recebido na Ordem.
Lá foi e o receberam; e vendo que seu pensamento não se realizava então, dizendo o ministro em capítulo que todo aquele que quisesse ir à província da Provença, pelo mérito da santa obediência, ele de boa vontade dava licença, veio-lhe grande vontade de ir, pensando em seu coração que fosse aquela a grande viagem que tinha de fazer, antes que fosse ao paraíso. Mas envergonhando-se de dizê-lo, confiando finalmente no dito Frei Filipe, o qual o tinha feito receber na Ordem, pediu-lhe com instância que lhe obtivesse a graça de ir à província da Provença. Então Frei Filipe, vendo a sua pureza e sua santa intenção, obteve-lhe a licença: pelo que Frei João com grande letícia pôs-se a andar tendo a opinião de que, terminada a viagem, iria ao paraíso.
Mas, pela vontade de Deus, viveu na dita província vinte e cinco anos nesta expectação e desejo, vivendo em grandíssima honestidade e santidade e exemplaridade, crescendo sempre em virtude e em graça de Deus e do povo, e era sumamente amado pelos irmãos e os seculares - E estando um dia Frei João devotamente em oração, e chorando e lamentando-se porque o seu desejo não se realizava e a sua peregrinação por esta vida muito se prolongava, apareceu-lhe Cristo bendito, a cujo aspecto sua alma ficou toda liqüefeita, e lhe disse: "Filho Frei João, pede-me o que quiseres". E ele respondeu: "Senhor meu, não sei o que te pedir senão a ti mesmo, não desejo nenhuma outra coisa: mas isto só te peço, que perdoes todos os meus pecados e me concedas a graça de te ver outra vez, quando tiver maior necessidade".
Disse Jesus: "Atendida foi a tua oração"; e dito isto se partiu, e Frei João ficou todo consolado. Por fim, ouvindo os frades da Marca a fama de sua santidade, tanto fizeram com o geral, que ele lhe enviou a obediência de voltar à Marca.
A qual obediência recebendo alegremente, pôs-se em caminho, pensando que, terminando-o, deveria ir ao céu segundo a promessa de Cristo. Mas voltado que foi à província da Marca, nela viveu trinta anos sem ser reconhecido por nenhum parente e em cada dia esperava que a misericórdia de Deus lhe realizasse a promessa. E durante esse tempo exerceu diversas vezes o cargo de guardião com grande discrição, e Deus operou por ele muitos milagres. E entre outros dons que ele teve de Deus, teve o espírito de profecia: pelo que uma vez, andando por fora do convento, um seu noviço foi combatido pelo demônio e tão fortemente tentado, que, consentindo na tentação, deliberou consigo mesmo sair da Ordem logo que Frei João voltasse.
A qual tentação e deliberação conhecendo Frei João por espírito de profecia, imediatamente voltou a casa e chamou a si o dito noviço e disse que queria que ele se confessasse. Mas antes de confessá-lo contou-lhe por ordem toda a sua tentação, conforme Deus lhe havia revelado e concluiu: "Filho, porque esperaste e não quiseste partir sem a minha bênção, Deus te fez a graça de que jamais desta Ordem sairás, mas morrerás na Ordem com a graça divina». Então o dito noviço foi confirmado em boa vontade e, ficando na Ordem, tornou-se um santo frade: e todas estas coisas me foram por ele contadas a mim Frei Hugolino.
O dito Frei João, o qual era um homem alegre e calmo e raras vezes falava, e era um homem de grande oração e devoção, e especialmente após Matinas não mais voltava à cela e ficava na igreja até ao amanhecer em oração, estando ele uma noite após Matinas em oração, apareceu-lhe o anjo de Deus e disse-lhe: "Frei João, está concluída a tua viagem, a qual por tanto tempo esperaste, e por isso anuncio da parte de Deus que peças a graça que quiseres. E ainda te anuncio que escolhas o que preferes, um dia de purgatório ou sete de sofrimento neste mundo". E preferindo Frei João os sete dias de sofrimento neste mundo, subitamente enfermou de diversas enfermidades; pelo que o acometeu a febre forte, e a gota nas mãos e nos pés e dores nas costas e muitos outros males.
Mas o que lhe fazia mais tormentos era que o demônio estava em sua frente e tinha na mão um grande papel em que estavam escritos todos os pecados que ele tinha cometido ou pensado; e lhe dizia: "Por estes pecados que cometeste com o pensamento e a língua e com as obras serás danado nas profundas do inferno". E ele não se recordava de bem algum que tivesse feito, nem que estivesse na Ordem nem que nunca nela tivesse estado; mas sim pensava de estar danado como o demônio lhe dizia. De modo que, quando lhe perguntavam como estava, respondia: "Estou mal, porque estou danado".
Isto vendo, os frades mandaram vir um frade velho por nome Frei Mateus de Monte Rubiano, o qual era um santo homem e grande amigo de Frei João. Chegou o dito Frei Mateus junto dele no sétimo dia da tribulação e o saudou e perguntou-lhe como estava. Respondeu-lhe que estava mal, porque estava danado. Então disse Frei Mateus: "Ora, não te recordas de que muitas vezes te confessaste comigo e inteiramente te absolvi de todos os teus pecados? Não te lembras mais que serviste a Deus nesta santa Ordem por muitos anos? Depois, não te recordas que a misericórdia de Deus excede a todos os pecados do mundo e que Cristo bendito nosso Salvador pagou, para nos resgatar, um preço infinito? E por isso tem boa esperança que por certo serás salvo".
E com este falar, porque havia chegado ao termo de sua purgação, foi-se a tentação e veio a consolação. E com grande letícia disse a Frei Mateus: "Porque te fatigaste e a hora é tarda, peço-te que te vás repousar". E Frei Mateus não o queria deixar, mas por fim, pela grande instância dele, deixou-o e foi repousar: e Frei João ficou sozinho com o frade que o servia. E eis Cristo bendito vem com grandíssimo esplendor e com excessiva suavidade de perfume, segundo havia prometido aparecer-lhe outra vez quando maior precisão tivesse dele e assim o sarou perfeitamente de toda enfermidade.
Então Frei João com as mãos juntas, agradecendo a Deus que com ótimo fim terminara sua viagem da presente mísera vida, nas mãos de Cristo bendito recomendou e entregou sua alma, passando desta vida mortal à eterna com Cristo bendito, o qual havia por tanto tempo desejado e esperado.
E repousa o dito Frei João no convento da Pena de S. João.
Em louvor de Cristo. Amém. 
Como Frei Pacífico, estando em oração, viu a alma de Frei Humilde, seu irmão, subir ao céu.

Na dita província da Marca, depois da morte de S. Francisco, entraram dois irmãos na Ordem; um teve por nome Frei Humilde e o outro Frei Pacífico, os quais foram homens de grandíssima santidade e perfeição.
E um, isto é, Frei Humilde, estava no convento de Soffiano e ali morreu; o outro estava de família em um convento assaz afastado dele. Como prouve a Deus, Frei Pacífico, estando um dia em oração num lugar solitário, foi arrebatado em êxtase e viu a alma do seu irmão Frei Humilde subir diretamente ao céu, sem demora nem impedimento, na mesma hora em que deixava o corpo - Sucedeu que, depois de muitos anos, este Frei Pacífico foi posto em família no dito convento de Soffiano, onde seu irmão tinha morrido.
Nesse tempo os frades, a pedido dos senhores de Brunforte, mudaram o convento para um outro lugar; pelo que, entre outras coisas trasladaram as relíquias dos santos frades que haviam morrido naquele convento. E chegando à sepultura de Frei Humilde, o seu irmão Frei Pacífico retirou-lhe os ossos e lavou-os com bom vinho e depois os envolveu numa toalha branca, e com grande reverência e devoção os beijava e chorava: por isso os outros frades se maravilharam e não recebiam bom exemplo: porque, sendo ele homem de grande santidade, parecia que, por amor sensual e secular, chorava seu irmão, e que maior devoção mostrava por estas relíquias, do que pelas dos outros frades que tinham sido de não menos santidade do que Frei Humilde, e eram dignas de reverência como as dele.
E conhecendo Frei Pacífico a sinistra imaginação dos frades, os satisfez humildemente e lhes disse: "Irmãos meus caríssimos, não vos admireis de que tivesse feito com os 0S.S.0S. do meu irmão o que não fiz com os dos outros; porque, bendito seja Deus, não se trata, como credes, de amor carnal, mas isso fiz porque, quando meu irmão passou desta vida, orando eu em um lugar deserto e afastado, vi sua alma pelo caminho certo subir ao céu; e portanto estou certo de que seus 0S.S.0S. são santos e ele deve estar no paraíso. E se Deus me tivesse concedido tanta certeza dos outros frades, a mesma reverência renderia aos 0S.S.0S. deles".
Pela qual coisa os frades, vendo-lhe a santa e devota intenção, ficaram bem edificados com ele e louvaram a Deus, o qual faz assim coisas maravilhosas aos santos frades seus.
Em louvor de Cristo. Amém.


Como Frei Tiago de Massa viu todos os frades menores do mundo na visão de uma árvore, e conheceu as virtudes e os méritos e os vícios de cada um.

Frei Tiago de Massa, ao qual Deus abriu a porta dos seus segredos e deu perfeita ciência e inteligência da divina Escritura e das coisas futuras, foi de tanta santidade, que Frei Egídio de Assis e Frei Marcos de Montino e Frei Junípero e Frei Lúcido diziam dele que não conheciam ninguém no mundo maior para com Deus.
Tive grande desejo de vê-lo, porque, pedindo eu a Frei João, companheiro do dito Frei Egídio, que me expusesse certas coisas do espírito, ele me disse: "Se quiseres ser informado na vida espiritual, procura falar com Frei Tiago de Massa: pois Frei Egídio mesmo desejava ser iluminado por ele e às suas palavras nada se pode ajuntar nem tirar; porque sua mente penetrou nos segredos celestes e suas palavras são palavras do Espírito Santo, e não há homem sobre a terra a quem eu tanto deseje ver". Este Frei Tiago, no principio do ministério de Frei João de Parma, rezando uma vez, foi arrebatado em Deus e esteve três dias arroubado neste êxtase, alheio a todo sentimento corporal, e esteve tão insensível, que os frades não duvidaram de que estivesse morto.
E nesse arroubamento foi-lhe revelado por Deus o que devia haver e acontecer em torno da nossa religião: pela qual coisa, quando a ouvi, me cresceu o desejo de vê-lo e de falar com ele. E quando foi Deus servido que eu tivesse ocasião de falar-lhe, supliquei assim: "Se é verdade o que ouvi de ti, peço-te que não mo ocultes. Ouvi que quando estiveste três dias como morto, entre outras coisas que Deus te revelou, houve o que deve acontecer nesta nossa religião. E isto disse o dito Frei Mateus, ministro da Marca, ao qual tu por obediência o revelaste".
Então Frei Tiago com grande humildade confessou que o que Frei Mateus dizia era verdade. E o seu dizer, isto é, do dito Frei Mateus, ministro da Marca, era o seguinte: "Eu sei de um frade ao qual Deus revelou tudo que há de suceder em nossa religião; porque Frei Tiago de Massa mo manifestou e disse que, depois de muitas coisas que Deus lhe revelara do estado da Igreja militante, viu em visão uma árvore bela e muito grande, cujas raízes eram de ouro, seus frutos eram homens e todos frades menores.
Seus ramos principais eram distintos segundo o número das províncias da Ordem, e cada ramo tinha tantos frades quantos os da província marcada no ramo: e então ele soube do número de todos os frades da Ordem e de cada província, e ainda o nome, a idade e as condições e os ofícios e os graus e a dignidade e as graças e as culpas de todos.
E viu Frei João de Parma no mais alto ponto do ramo do meio desta árvore; e no extremo dos ramos que estavam em torno deste ramo do meio estavam os ministros de todas as províncias. E depois disto viu Cristo assentar-se num trono grandíssimo e cândido, o qual Cristo chamava S. Francisco e dava-lhe um cálice cheio de espírito de vida, e ordenava-lhe, dizendo: 'Vai e visita teus frades e dá-lhes de beber deste cálice do espírito de vida, porque o espírito de Satanás se levantará contra eles e os combaterá e muitos deles cairão e não se levantarão'.
E deu Cristo a S. Francisco dois anjos para acompanhá-lo. E então veio S. Francisco apresentar o cálice da vida aos seus frades, e começou a apresentá-lo a Frei João de Parma, o qual tomando-o bebeu-o todo depressa e devotamente, e subitamente tornou-se todo luminoso como o sol. E depois dele sucessivamente S. Francisco apresentou-o a todos os outros: e poucos eram os que o bebiam todo.
Aqueles que o tomavam devotamente e o bebiam todo, subitamente tornavam-se esplendentes como o sol; e aqueles que o derramavam todo, e o não tomavam com devoção, tornavam-se negros e escuros e deformados e horríveis de ver-se; e aqueles que em parte bebiam e em parte o entornavam, tornavam-se parcialmente luminosos e parcialmente tenebrosos, e mais ou menos conforme a quantidade que bebiam ou derramavam. Mais acima de todos os outros o dito Frei João resplandecia, o qual mais completamente havia bebido o cálice da vida, pelo qual ele tinha contemplado profundamente o abismo da infinita luz divina, e nela tinha conhecido a adversidade e a tempestade que se deviam levantar contra a dita árvore e agitar e comover os seus ramos.
Pela qual coisa o dito Frei João partiu de cima do ramo no qual estava; e descendo abaixo de todos os ramos se ocultou na base do tronco da árvore e ficou pensativo. E Frei Boaventura, o qual havia bebido parte do cálice e parte derramado, subiu para aquele ramo e para o lugar de onde tinha descido Frei João. E estando no dito lugar tornaram-se-lhe as unhas das mãos unhas de ferro agudas e cortantes como navalhas: pelo que deixou o lugar para onde havia subido, e com ímpeto de furor queria lançar-se contra o dito Frei João para o ferir. Mas Frei João, vendo isto, gritou com força e recomendou-se a Cristo, o qual se assentava no trono; e Cristo ao grito dele chamou S. Francisco e deu-lhe uma pederneira afiada e disse-lhe: 'Vai com esta pedra e corta as unhas de Frei Boaventura, com as quais ele quer arranhar Frei João, para que não o possa ofender'.
Então S. Francisco foi e fez como Cristo tinha mandado. E feito isto, veio uma tempestade de vento e sacudiu a árvore tão fortemente que os frades caíram no chão, e primeiramente caíram os que tinham derramado o cálice da vida, e eram carregados pelos demônios para lugares tenebrosos e penosos.
Mas Frei João juntamente com os outros que tinham bebido todo o cálice, foi transladado pelos anjos para um lugar de vida e de lume eterno e de esplendor beatifico. E o dito Frei Tiago, que via a visão, entendia e discernia particularmente e distintamente o que via, quanto aos nomes, condições e estados de cada um claramente. E tanto durou aquela tempestade contra o arvore, que ela caiu e o vento a levou.
E Imediatamente depois que cessou a tempestade, das raízes desta árvore, que eram de ouro, nasceu outra árvore que era toda de ouro, a qual produziu folhas e flores e frutos dourados. Da qual árvore e do seu desenvolvimento, profundidade, beleza e ardor e virtude, melhor é calar do que dizer no presente".
Em louvor de Cristo. Amém.

Como Cristo apareceu a Frei João do Alverne.

Entre os outros sábios e santos frades e filhos de S. Francisco, os quais, segundo o dito de Salomão, são a glória do pai, existiu no nosso tempo na dita província dá Marca o venerável santo Frei João de Fermo, o qual pelo longo tempo em que viveu no santo convento do Alverne e dali passou desta vida, era por isso chamado Frei João do Alverne; porque foi homem de singular vida e de grande santidade. Este Frei João, sendo menino de escola, desejara com todo o coração a via da penitência a qual mantém a mundícia do corpo e da alma; pelo que, sendo menino bem pequeno, começou a trazer o cilício de malha e o circulo de ferro na carne nua e a fazer grande abstinência, e especialmente quando viveu com os cônegos de S. Pedro de Fermo, os quais passavam esplendidamente.
Ele fugia das delicias corporais e macerava o corpo com grande rigidez de abstinência. Mas, havendo entre os companheiros muitos que eram contra isto, os quais lhe tiravam o cilicio, e a sua abstinência por diversos modos impediam, ele, inspirado por Deus, pensou de deixar o mundo com os seus amadores, e de oferecer-se todo nos braços do Crucificado com o hábito do crucificado S. Francisco, e assim o fez. Sendo, pois, recebido na Ordem tão criança e entregue aos cuidados do mestre de noviços, tornou-se tão espiritual e devoto, que às vezes ouvindo o dito mestre falar de Deus, o coração dele se derretia como a cera perto do fogo; e com tão grande suavidade de graça se aquecia no amor divino que ele, não podendo estar firme e suportar tanta suavidade, se levantava e como ébrio de espírito punha-se a correr ora pelo horto, ora pela floresta, ora pela igreja, conforme a flama e o ímpeto do espírito o impeliam.
Com o correr do tempo a divina graça continuamente fez este homem angélico crescer de virtude em virtude e em dons celestiais e divinas elevações e arroubamentos; tanto que de algumas vezes sua mente era erguida a esplendores de querubins, de outras vezes a ardores de serafins, de outras vezes a gáudio dos bem-aventurados, de outras vezes a amorosos e excessivos abraços de Cristo, não somente por gostos espirituais internos, mas também por expressivos sinais exteriores e gostos corporais. E singularmente uma vez por modo excessivo inflamou o seu coração a chama do amor divino, e nele durou esta chama bem três anos; no qual tempo ele recebia maravilhosas consolações e visitas divinas e freqüentes vezes era arrebatado em Deus; e, brevemente, no dito tempo ele parecia todo inflamado e inclinado no amor de Cristo: e isto aconteceu no monte santo do Alverne.
Mas porque Deus tem singular cuidado com seus filhos, dando-lhes, conforme a diferença dos tempos, ora consolação, ora tribulação, ora prosperidade, ora adversidade, como vê que as precisam para se manterem na humildade, ou para lhes acender o desejo das coisas celestiais; aprouve à divina bondade depois de três anos retirar do dito Frei João este raio e esta flama do divino amor, e privou-o de toda consolação espiritual: pelo que Frei João ficou sem lume e sem amor de Deus, e todo desconsolado e aflito e dolorido. Pela qual coisa ele tão agoniado andava pela floresta vagando por aqui e por ali, chamando com vozes e lágrimas e suspiros o dileto esposo de sua alma, o qual se havia escondido e dele se partira, sem cuja presença sua alma não achava trégua nem repouso. Mas em nenhum lugar, nem de maneira nenhuma ele podia encontrar o doce Jesus, nem readquirir aqueles suavíssimos gostos espirituais do amor de Cristo a que estava acostumado.
E durou-lhe esta tribulação por muitos dias, durante os quais perseverou em contínuo chorar e suspirar, pedindo a Deus que lhe restituísse por sua piedade o dileto esposo de sua alma. Por fim, quando aprouve a Deus ter provado bastante a paciência dele e inflamado o seu desejo, um dia em que o dito Frei João andava pela dita floresta assim aflito e atribulado pelo cansaço, se assentou, encostando-se a uma faia, e estava com a face toda banhada de lágrimas a olhar para o céu; e eis que subitamente apareceu Jesus Cristo perto dele no atalho pelo qual Frei João tinha vindo, mas nada disse.
Vendo-o Frei João e reconhecendo bem que ele era Cristo, subitamente se lhe lançou aos pés e com desmesurado pranto rogava-lhe humilíssimamente e dizia: "Socorre-me, Senhor meu, que sem ti, Salvador meu dulcíssimo, fico em trevas e em lágrimas; sem ti, cordeiro mansíssimo, estou em agonia e em pena e com pavor; sem ti, filho de Deus altíssimo, estou confuso e envergonhado; sem ti estou despojado de todos os bens e cego, porque tu és Jesus Cristo, verdadeira luz da alma; sem ti estou perdido e danado, porque és a vida da alma e vida da vida; sem ti sou estéril e árido, porque és a fonte de todos os dons e de todas as graças; sem ti estou de todo desconsolado, porque és Jesus nossa redenção, amor e desejo, pão reconfortante e vinho que alegra os coros dos anjos e os corações de todos os santos.
Alumia-me, mestre graciosíssimo e pastor piedosíssimo, porque sou tua ovelhinha, bem que indigna seja". Mas porque o desejo dos santos homens, ao qual Deus tarda de atender, os abrasa em mais alto amor e mérito, Cristo bendito se parte sem ouvi-lo e sem falar-lhe nada e desapareceu pelo dito atalho. Então Frei João se levantou e corre atrás dele e novamente se lhe lança aos pés, e com santa importunidade o retém e com devotíssimas lágrimas roga, e diz: "Ó Jesus Cristo dulcíssimo, tem misericórdia de mim o atribulado, atende-me pela multidão de tua misericórdia e pela verdade da tua salvação, restitui-me a letícia da face tua e do teu piedoso olhar, porque de tua misericórdia é plena toda a terra".
E Cristo ainda se parte e faz como a mãe ao filho quando o deixa gritar pelo peito e faz que venha atrás dela chorando a fim de que ele mame com mais vontade. Pelo que Frei João com mais fervor ainda e desejo seguiu a Cristo; e chegando que foi a ele, Cristo bendito voltou-se e olhou-o com o semblante alegre e gracioso; e abrindo os seus santíssimos e misericordiosos braços, abraçou-o dulcissimamente: e naquele abrir de braços viu Frei João sair do sacratíssimo peito do Salvador raios de luz esplendentes, os quais Iluminavam toda a floresta como também a ele na alma e no corpo. Então Frei João se ajoelhou aos pés de Cristo; e Jesus bendito, como fez à Madalena, lhe deu o pé benignamente a beijar; e Frei João, tomando-o com suma reverência, banhou-o de tantas lágrimas que verdadeiramente parecia uma outra Madalena, e dizia devotamente: "Peço-te, Senhor meu, que não olhes os meus pecados; mas pela tua santíssima paixão e pela efusão do teu santíssimo sangue precioso, ressuscita minha alma à graça do teu amor; como é teu mandamento, que te amemos com todo o coração e com todo o afeto; o qual mandamento ninguém pode cumprir sem a tua ajuda.
Ajuda-me, pois, amantíssimo filho de Deus, para que te ame com todo o meu coração e todas as minhas forças". E estando assim Frei João neste falar aos pés de Cristo, foi por ele atendido e recuperou a primeira graça, isto é, a da flama do amor divino, e todo sentiu-se consolado e renovado: e conhecendo que o dom da divina graça tinha voltado, começou a agradecer ao Cristo bendito e a beijar-lhe devotamente os pés.
E depois erguendo-se para o ver de face, Jesus Cristo lhe estendeu e deu-lhe as santíssimas mãos a beijar; e beijadas que foram, Frei João se aproximou o encostou-se ao peito de Jesus e abraçou-o e beijou-o, e Cristo semelhantemente beijou-o e abraçou-o. E neste abraçar e neste beijar Frei João sentiu tanto olor divino que, se todas as especiarias e todas as coisas odoríferas do mundo estivessem reunidas, teriam parecido um aroma vil em comparação daquele olor.
E com isso Frei João foi arrebatado e consolado e iluminado, e duroulhe aquele odor na alma muitos meses. E dora em diante de sua boca, abeberada na fonte da divina sapiência no sagrado peito do Salvador, saíam palavras maravilhosas e celestiais as quais mudavam os corações de quem o ouvia e faziam grandes frutos nas almas. E no atalho da floresta, no qual estiveram os benditos pés de Cristo, e por grande distância em torno, Frei João sentia aquele olor e via aquele esplendor sempre quando ia ali muito tempo depois, Voltando a si Frei João após aquele rapto, e desaparecida a presença corporal de Cristo, ficou tão ilurninado na alma pelo abismo de sua divindade, que, ainda não sendo homem letrado por humano estudo, no entanto maravilhosamente resolvia e explicava as sutilíssimas questões da Trindade divina, e os profundos mistérios dá santa Escritura.
E muitas vezes depois, falando diante do papa e dos cardeais, de reis e barões e mestres e doutores, os punha a todos em grande estupor pelas altas palavras e profundas sentenças que dizia.
Em louvor de Cristo. Amém.

Como, dizendo missa em dia de finados,
Frei João do Alverne viu muitas almas libertadas do purgatório.

Dizendo uma vez o dito Frei João a missa, no dia depois de Todos os Santos, por todas as almas dos mortos, conforme manda a Igreja, ofereceu com tanto afeto de caridade e com tanta piedade de compaixão aquele altíssimo sacramento; o qual pela sua eficácia as almas dos mortos desejam acima de todos os outros bens que por elas se possam fazer; que parecia todo ele se derreter pela doçura de piedade e de caridade fraterna. Pela qual coisa, naquela missa, levantando o corpo de Jesus Cristo e oferecendo-o a Deus Pai e rogando-lhe que, pelo amor do seu bendito filho Jesus Cristo, o qual, para resgatar as almas, fora dependurado na cruz, lhe aprouvesse libertar das penas do purgatório as almas dos mortos por ele criadas e resgatadas: imediatamente viu um número quase infinito de almas saírem do purgatório como inumeráveis faiscas de fogo que saíssem duma fogueira acesa, e viu subirem ao céu pelos méritos da paixão de Cristo, o qual todos os dias é oferecido pelos vivos e pelos mortos naquela sacratíssima hóstia digna de ser adorada in secula seculorum. Amém.
 
Do santo frade Tiago de Fallerone; e como, depois de morto,
apareceu a Frei João do Alverne.

No tempo em que Frei Tiago de Fallerone, homem de grande santidade, estava gravemente enfermo no convento de Moliano, na custódia de Fermo, Frei João do Alverne, o qual vivia então no convento de Massa, sabendo de sua enfermidade, porque o amava como seu querido pai, pôs-se em oração por ele, pedindo devotamente a Deus com oração mental que ao dito Frei Tiago restituísse a saúde do corpo, se fosse melhor para sua alma. E estando nesta devota oração foi arrebatado em êxtase e viu no ar um grande exército de anjos e santos posto sobre a sua cela que era na floresta, com tanto esplendor, que toda a região circunvizinha estava iluminada.
E entre estes anjos viu Frei Tiago enfermo, por quem ele orava, envolto em cândidas vestes resplandecentes. Viu ainda entre eles o bem-aventurado Pai S. Francisco adornado dos sagrados estigmas de Cristo e de muita glória. Viu ainda e reconheceu a Frei Lúcido santo e a Frei Mateus, o antigo, do monte Rubiano, e mais outros frades, os quais nunca tinha visto nem conhecido nesta vida.
E olhando assim Frei João com grande satisfação aquele bendito cortejo de santos, foi-lhe revelado como certa a salvação da alma do dito frade enfermo e que daquela enfermidade devia morrer, mas não subitamente, e depois da morte devia ir ao paraíso, porque convinha um pouco purgar-se no purgatório Pela qual revelação Frei João teve tanta alegria pela salvação da alma, que da morte do corpo nada lastimava; mas com grande doçura de espírito o chamava em si mesmo dizendo: "Frei Tiago, doce pai meu; Frei Tiago, doce irmão meu; Frei Tiago, fidelíssimo servo e amigo de Deus; Frei Tiago, companheiro dos anjos e consócio dos bemaventurados"- E assim com esta certeza e gáudio tornou a si e logo partiu do convento e foi visitar o dito Frei Tiago em Moliano: e encontrando-o tão grave, que apenas podia falar, anunciou-lhe a morte do corpo e a salvação e a glória da alma, segundo a certeza que tinha pela divina revelação.
Pelo que Frei Tiago, todo alegre na alma e no semblante, o recebeu com grande letícia e riso venturoso, agradecendo-lhe a boa-nova que lhe trazia e a ele devotamente recomendando-se. Então Frei João lhe rogou instantemente que após morrer voltasse a ele para falar-lhe do seu estado; e Frei Tiago prometeu-lhe, se fosse da vontade de Deus. E ditas estas palavras, aproximando-se a hora do seu passamento, Frei Tiago começou a dizer devotamente aquele verso do Salmo: "Em paz na vida eterna adormecerei e repousarei".
E dito este verso, com venturosa e alegre face passou desta vida. E depois que ele foi enterrado, Frei João voltou ao convento de Massa e esperou a promessa de Frei Tiago de tornar a ele no dia que tinha dito. Mas orando no dito dia, apareceu-lhe Cristo com grande acompanhamento de anjos e santos, entre os quais não estava Frei Tiago. Pelo que Frei João, maravilhando-se muito, recomendou-o devotamente a Cristo. Depois, no dia seguinte, orando Frei João na floresta, apareceu-lhe Frei Tiago acompanhado daqueles anjos, todo glorioso e todo alegre, e disse-lhe Frei João: "Õ pai caríssimo, por que não voltaste a mim no dia em que me prometeste?" Respondeu Frei Tiago: "Porque tinha necessidade de alguma purgação; mas naquela mesma hora em que Cristo te apareceu e me recomendaste, Cristo te atendeu e me livrou de todas as penas.
E então eu apareci a Frei Tiago de Massa, leigo santo, o qual servia à missa e viu a hóstia consagrada, quando o padre a ergueu, convertida e mudada na forma de uma belíssima criança viva; e disse-lhe: 'Hoje com este menino me vou ao reino da vida eterna, ao qual ninguém pode ir sem ele"'.
E ditas estas palavras, Frei Tiago desapareceu e foi ao céu com toda aquela bemaventurada companhia de anjos, e Frei João ficou muito consolado. Morreu o dito Frei Tiago de Fallerone na vigília de S. Tiago apóstolo, no mês de julho, no sobredito convento de Moliano, no qual pelos seus méritos a divina bondade operou, depois de sua morte, muitos milagres.
Em louvor de Cristo. Amém.

Da visão de Frei João do Alverne, da qual conheceu toda a ordem da santa Trindade.

O sobredito Frei João do Alverne, porque perfeitamente havia renunciado a todo deleite e consolação mundana e temporal, e em Deus havia posto todo o seu deleite e toda a sua esperança, a divina bondade lhe dera maravilhosas consolações e revelações, especialmente nas solenidades de Cristo.
Pelo que, aproximando-se uma vez a solenidade da Natividade de Cristo, na qual esperava de certo consolação pela doce humanidade de Jesus, o Espírito Santo pôs-lhe na alma tão grande e excessivo amor e fervor da caridade de Cristo, pela qual ele se tinha humilhado, tomando a nossa humanidade, que verdadeiramente lhe parecia ter sido tirada sua alma ao corpo e arder como uma fornalha. O qual ardor não podendo suportar se agoniava e se derretia inteiramente e gritava em altas vozes; porque, pelo ímpeto do Espírito Santo e pelo excessivo fervor do amor, ele não se podia conter de gritar.
E na hora em que aquele desmesurado fervor lhe vinha, com ele lhe vinha tão forte e certa a esperança de sua salvação, que por nada deste mundo acreditara que se então morresse devesse passar pelas penas do purgatório. E aquele amor lhe durou bem um meio ano, ainda que aquele excessivo fervor não fosse continuado, mas lhe viesse em certas horas do dia. E naquele tempo e depois recebeu maravilhosas e muitas visitas e consolações de Deus e muitas vezes foi arrebatado, como viu aquele frade o qual primeiramente escreveu estas coisas: entre as quais, uma noite ficou tão enlevado e arrebatado em Deus que viu nele, Criador, todas as coisas criadas e celestiais e terrenas com todas as suas perfeições e graus e ordens distintas.
E então conheceu claramente como cada coisa criada representava o seu Criador, e como Deus está sobre e dentro e fora e ao lado de todas as coisas criadas. E conheceu depois um Deus em três pessoas e três pessoas em um Deus, e a infinita caridade a qual fez o filho de Deus se encarnar, por obediência ao Pai.
E finalmente conheceu naquela visão como não há outra via pela qual a alma possa ir a Deus e ter a vida eterna, senão pelo Cristo bendito, o qual é caminho, verdade e vida da alma. Amém.
 
Como, dizendo a missa, Frei João do Alverne cai como se fosse morto.

Ao dito Frei João no sobredito convento de Moliano, conforme contaram os frades que ai estavam presentes, sucedeu uma vez este caso admirável, que na primeira noite depois da oitava de S. Lourenço e dentro da Assunção de Nossa Senhora, tendo dito Matinas na igreja com os outros frades e sobrevindo nele a unção da divina graça, foi para o horto contemplar a paixão de Cristo e preparar-se com toda a devoção para celebrar a missa a qual lhe competia cantar pela manhã.
Estando na contemplação das palavras da consagração do corpo de Cristo e considerando a infinita caridade de Cristo pela qual quis não somente resgatar-nos com seu sangue precioso, mas ainda deixar-nos por cibo da nossa alma seu corpo e sangue digníssimo, começou-lhe a crescer com tanto fervor e tanta suavidade o amor do doce Jesus, que já não podia mais suportar sua alma outra doçura, mas gritava forte, e, como ébrio de espírito, não cessava de dizer consigo mesmo: "Hoc est corpus meum", porque, dizendo estas palavras, parecia-lhe ver Cristo bendito com a Virgem Maria e com uma multidão de anjos. E neste dizer o Espírito Santo esclarecia-lhe todos os profundos e altos mistérios daquele altíssimo sacramento. E aparecida que foi a aurora, ele entrou na igreja com aquele fervor de espírito, e com aquela ansiedade e com aquele dizer, sem pensar que fosse ouvido nem visto por ninguém; mas no coro estava um frade em oração, o qual via e ouvia tudo.
E não podendo naquele fervor conter-se pela abundância da divina graça, gritava em altas vozes; e assim esteve até à hora de dizer a missa; pelo que se foi preparar e subiu ao altar. E começando a missa, quanto mais prosseguia, tanto mais lhe crescia o amor de Cristo e aquele fervor da devoção com a qual lhe era dado um sentimento de Deus inefável, o qual ele mesmo não sabia nem podia depois exprimir com a lingua.
Pelo que, temendo que aquele fervor e sentimento de Deus crescesse tanto que lhe fosse preciso deixar a missa, ficou em grande perplexidade, e não sabia que partido tomar, se continuar a missa ou ficar esperando. Mas porque de outra vez lhe havia acontecido caso semelhante e o Senhor havia de tal modo temperado aquele fervor, que não lhe fora necessário deixar a missa, confiando poder assim fazer desta vez, com grande temor pôs-se a prosseguir a missa: e chegando ao Prefácio de Nossa Senhora, começou-lhe tanto a crescer a divina iluminação e a graciosa suavidade do amor de Deus, que chegando ao "Qui pridie", apenas podia suportar tanta suavidade e doçura.
Finalmente, chegando ao ato da consagração, e dita a metade das palavras sobre a hóstia, isto é, "Hoc est"; por maneira nenhuma podia ir além, mas sempre repetia essas mesmas palavras "Hoc est": e a razão por que não podia prosseguir era que sentia e via a presença de Cristo com uma multidão de anjos, cuja majestade ele não podia suportar: e via que Cristo não entraria na hóstia ou que a hóstia não se transubstanciaria no corpo de Cristo se ele não proferisse a outra metade das palavras, isto é, "corpus meum".
Pelo que estando nesta ansiedade e não podendo ir adiante, o guardião e os outros frades e também muitos seculares que estavam na igreja ouvindo a missa aproximaram-se do altar e ficaram espantados vendo e considerando os atos de Frei João e muitos dentre eles choravam por devoção.
Por fim, depois de grande espaço, isto é, quando prouve a Deus, Frei João proferiu "corpus meum" em altas vozes; e subitamente a forma do pão esvaneceu-se e na hóstia apareceu Jesus Cristo bendito coroado e glorificado; e mostrou-lhe a humildade e caridade a qual o fez encarnar-se na Virgem Maria, e a qual o faz cada dia vir às mãos do sacerdote quando consagra a hóstia, pela qual coisa foi ele mais elevado na doçura da contemplação. Pelo que tendo elevado a hóstia e o cálice consagrado, foi arrebatado e sendo sua alma suspensa dos sentimentos corporais, seu corpo caiu para trás; e se não fosse sustentado pelo guardião, o qual estava atrás dele, teria caldo de costas no chão. E assim correndo os frades e os seculares que estavam na igreja, homens e mulheres, ele foi levado para a sacristia como morto, porque seu corpo estava frio como o corpo de um morto e os dedos de suas mãos estavam contraídos tão fortemente que nem mesmo se podiam distender ou mover.
E deste modo jazeu desfalecido, ou antes arroubado, até à Terça, e era no verão. E porque eu, o qual estava presente, desejava muito saber o que Deus tinha operado nele, logo que voltou a si dirigi-me a ele e pedi-lhe pela caridade de Deus que me contasse tudo. E ele, porque se confiava muito em mim, narrou-me tudo por ordem; e entre outras coisas me disse que, consagrando o corpo e o sangue de Jesus Cristo e diante dele, seu coração estava líquido como uma cera muito mole e sua carne parecia não ter ossos, de tal modo que quase não podia levantar o braço nem a mão para fazer o sinal-da-cruz sobre a hóstia e sobre o cálice.
Disse-me ainda que antes de se fazer padre fora-lhe revelado por Deus que devia desmaiar na missa; mas porque já tinha 'dito muitas missas e aquilo não lhe acontecera, pensava que a revelação não tivesse sido de Deus.
Contudo, talvez cinqüenta dias antes da Assunção de Nossa Senhora, na qual o sobredito caso adviera ainda lhe fora por Deus revelado que aquele caso lhe devia advir por volta da dita festa da Assunção; mas depois não se recordou da dita revelação. Amém.




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