sábado, 22 de setembro de 2012


A dimensão do profundo: o espírito
Leonardo Boff*


O ser humano não possui apenas exterioridade, que é sua expressão corporal. Nem só interioridade, que é seu universo psíquico interior. Ele vem dotado também de profundidade, que é sua dimensão espiritual.

O espírito não é uma parte do ser humano ao lado de outras. É o ser humano inteiro, que por sua consciência se percebe pertencendo ao Todo e como porção integrante dele. Pelo espírito temos a capacidade de ir além das meras aparências, do que vemos, escutamos, pensamos e amamos.  

Podemos apreender o outro lado das coisas, o seu profundo.  As coisas não são apenas "coisas". O espírito capta nelas símbolos e metáforas de uma outra realidade, presente nelas mas que não está circunscrita a elas, pois as desborda por todos os lados. Elas recordam, apontam e remetem à outra dimensão a que chamamos de profundidade.

Assim, uma montanha não é apenas uma montanha.  Pelo fato de ser montanha, transmite o sentido da majestade.  O mar evoca a grandiosidade, o céu estrelado, a imensidão, os vincos profundos do rosto de um ancião, à dura luta da vida e os olhos brilhantes de uma criança, o mistério da vida.
É próprio do ser humano, portador de espírito, perceber valores e significados e não apenas elencar fatos e ações.  Com efeito, o que realmente conta para as pessoas não são tanto as coisas que lhes acontecem, mas o que elas significam para suas vidas e que tipo de experiências marcantes lhes proporcionaram.

Tudo que acontece carrega, existencialmente, um caráter simbólico, ou podemos dizer até sacramental. Já observava finamente Goethe: ”Tudo é passageiro não é senão um sinal” (Alles Vergängliche ist nur ein Zeichen”). É da natureza do sinal-sacramento tornar presente um sentido maior, transcendente, realizá-lo na pessoa e fazê-lo objeto de experiência. Neste sentido, todo evento nos relembra aquilo que vivenciamos e nutre nossa profundidade.

É por isso que enchemos nossos lares com fotos e objetos amados de nossos pais, avós, familiares e amigos; de todos aqueles que entram em nossas vidas e que tem significado para nós.  Pode ser a última camisa usada pelo pai que morreu de um enfarte fulminante com apenas 54 anos, o pente de madeira da avó querida que faleceu já há anos ou a folha seca dentro de um livro, enviada pelo namorado cheio de saudades. Estas coisas não são apenas objetos; são sacramentos que nos falam para o nosso profundo, nos lembram pessoas amadas ou acontecimentos significativos para nossas vidas

O espírito nos permite fazer uma experiência de não dualidade, tão bem descrita pelo zenbudismo. “Você é o mundo, é o todo” dizem os Upanishads da Índia enquanto o guru aponta para o universo.  Ou “Você é tudo”, como muitos iogues dizem.  “O Reino de Deus (Malkuta d’Alaha ou ‘os Princípios Guias do Todo) está dentro de vós”, proclamou Jesus.  Estas afirmações nos remetem a uma experiência viva ao invés de uma simples doutrina.

A experiência de base é que estamos ligados e religados (a raiz da palavra religião) uns aos outros e todos com a Fonte Originária.  Um fio de energia, de vida e de sentido passa por todos os seres tornando-os um cosmos ao invés de caos, uma sinfonia ao invés de cacofonia. Blaise Pascal que além de genial matemático era também místico, disse incisivamente; “É o coração que sente Deus, não a razão” (Pensées, frag. 277).  Este tipo de experiência transfigura tudo.  Tudo se torna permeado de veneração e unção.

As religiões vivem desta experiência espiritual. Elas são posteriores a ela. Articulam-na em doutrinas, ritos, celebrações e caminhos éticos e espirituais.  Sua função primordial é criar e oferecer as condições necessárias para permitir a todas as pessoas e comunidades mergulharem na realidade divina e atingir uma experiência pessoal do Espírito Criador.

Esta experiência, precisamente por ser experiência e não doutrina irradia serenidade e profunda paz, acompanhada pela ausência do medo.  Sentimo-nos amados, abraçados e acolhidos pelo Seio Divino.  O que nos  acontece, acontece no seu amor.  Mesmo a morte não nos mete medo; é assumida como parte da vida, como o grande momento alquímico da transformação que nos permite estar verdadeiramente no Todo, no coração de Deus. Precisamos passar pela morte para viver mais e melhor.

*Leonardo Boff é autor de 'Espiritualidade: caminho de realização' (Vozes, 2003).

sábado, 8 de setembro de 2012


É tempo de aprofundar o conhecimento da Palavra de Deus

Dom Orani João Tempesta*

 Desde 1971, o mês de setembro na Igreja do Brasil é quando se enfatiza e se busca aprofundar ainda mais nossa relação com a Palavra de Deus, a Bíblia. Porém, não significa dizer que a Bíblia deva ser lida ou aprofundada apenas nesse período. Ela é um livro de cabeceira, deve estar presente em todos os momentos de nosso dia, orientando-nos, formando-nos, transformando-nos. Ela é luz para o nosso caminhar. Este mês, portanto, é um esforço comum de nossas paróquias e dioceses de aprofundarem juntos algum tema ou livro da Palavra de Deus, útil para nosso crescimento comunitário e pessoal, em vista da comunidade cristã que queremos ser.
A palavra Bíblia é que dá origem à palavra biblioteca, e expressa a realidade de ser o texto sagrado um "conjunto de livros". Ler a Palavra de Deus é uma expressão coerente de nosso caminho, que busca encontrar e fincar raízes na fé e na construção ativa do Reino de Deus. Somos convocados a uma experiência maior e mais profunda com Cristo, Palavra eterna do Pai, na comunidade, na família, na sociedade.

Por que setembro foi o mês escolhido para o aprofundamento da Palavra de Deus? Devido à celebração do dia de São Jerônimo, no dia 30. Ele viveu por volta do ano de 340 e foi a ele confiada, pelo papa Dâmaso, a tradução latina da Sagrada Escritura. Essa tradução da Palavra para o latim ficou conhecida como a bíblia Vulgata, que significa "popular". Essa tradução foi tão rica e significativa que é usada até hoje em muitas traduções da Bíblia.

Uma das frases mais célebres de São Jerônimo foi: "Desconhecer as Escrituras é desconhecer a Cristo". Uma frase fundamental para nós, cristãos, que buscamos conhecer, contemplar e seguir a Palavra de Deus contida nas linhas sagradas dos textos bíblicos. Ninguém ama aquilo que não conhece. Portanto, seria impensável imaginar alguém que se diga cristão, mas não busque conhecer e aprofundar a Palavra de Deus. Como chegar ao conhecimento da Revelação e de sua plenitude em Jesus Cristo se desconhecemos sua Palavra e ensinamentos, ordens e ações? 
Muitas são as possibilidades oferecidas pela Igreja para aprofundarmos nosso conhecimento da Palavra de Deus. Elas vão desde os estudos filosófico-teológicos, que buscam investigar o máximo possível toda a riqueza e significados que o texto nos pode proporcionar, seja pela exegese, pela hermenêutica, ou ainda pelas outras disciplinas bíblicas oferecidas nos institutos filosófico-teológicos, até os populares círculos bíblicos, grupos de estudo da Palavra, catequese e a leitura orante da Bíblia (lectio divina).

 A Bíblia está dividida em duas partes, como todos sabem: Antigo e Novo Testamento. Ela é composta de 73 livros, sendo 46 livros do Primeiro Testamento e 27 do Segundo Testamento. A leitura constante e assídua da Palavra de Deus vai ajudando aos poucos as pessoas a descobrirem toda a riqueza que ela contém, bem como o bem que ela pode realizar na vida de cada fiel.
A Bíblia trata da nossa salvação. Por isso, dentro dela encontramos muitos assuntos pertinentes e desejados pelo homem na busca constante da verdade, a relação terna e direta com Deus, o rompimento dessa amizade com Deus pelo pecado, a Aliança de Deus com seu povo, a história dos patriarcas e profetas, a encarnação do Verbo Divino, Jesus Cristo, plenitude da história da salvação, a vinda do Espírito Santo no dia de Pentecostes, e se estende até a parusia, no final dos tempos, quando, enfim, todo poder lhe será submetido, e, então, assentado em trono, Rei vitorioso, virá uma segunda vez e instaurará definitivamente seu Reino de paz e amor, bondade e justiça, mansidão e misericórdia.

O centro de toda a Escritura se dá em Jesus Cristo, a máxima expressão da revelação e da bondade de Deus, que a todos quer que cheguem ao conhecimento da Verdade, que é Cristo. Em Jesus se cumprem todas as promessas feitas pelo Pai no Antigo ou Primeiro Testamento aos profetas e a todo o Israel de Deus. Jesus é a plena revelação da vontade do Pai para a salvação dos homens e a construção do Reino. Tudo que ele faz diz de quem ele é. Tudo que ele  é manifestado nas obras que realiza. Lendo as Escrituras, encontramos um caminho sólido e seguro no conhecimento da vontade de Deus. Cristo é a Palavra viva de Deus, e todas as palavras do texto sagrado, portanto, têm sentido pleno e definitivo nele.
Neste ano, o mês da Bíblia quer aprofundar ainda mais o texto do Evangelho de Marcos. O tema sugerido é Discípulos missionários, a partir do Evangelho de Marcos, e o lema: Coragem levanta-te, ele te chama! (Mc 10,49). Nos próximos anos serão estudados os outros três evangelistas. O enfoque será no seguimento de Jesus, proposto nos quatro evangelhos. Este tema reunirá tanto a proposta de Aparecida, que enfatiza o discípulo missionário e a missão continental, como a proposta do papa Bento XVI, sobre a nova evangelização, que é o tema do Sínodo dos Bispos no próximo mês.

Que esta seja uma oportunidade para conhecermos melhor a Palavra de Deus, a pessoa de Jesus e a proposta de seu Reino, para construirmos juntos, a partir dele, novos céus e nova terra, onde todos possamos viver como irmãos na Unidade da Trindade e na diversidade de carismas e ministérios, em torno de um único e verdadeiro Senhor: Jesus Cristo.
Que a Palavra de Cristo continue a iluminar todas as nossas realidades humanas e nos encaminhe para a eternidade feliz, e que Maria, mãe do Verbo encarnado, nos ajude a conceber todos os dias a Palavra de seu Filho que é criadora, nos leva à salvação e à plena realização humana, que é a felicidade, o bem e a verdade contidos na pessoa de Cristo.

 *Dom Orani João Tempesta, cisterciense, é arcebispo do Rio de Janeiro.